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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Do Sentimento Trágico da Vida

28.10.23 | Manuel

Miguel de Unamuno.jpg

Miguel de Unamuno 

AMOR, DOR, COMPAIXÃO E PERSONALIDADE

Cain    …………………………………………………

Let me or happy or unhappy, learn,

To anticipe my immortality.

Lucifer. Thou didst before I came upon thee.

Cain    …………………………………………… How?

Lucifer. By suffering.

(Lord Byron: Cain, act II, scene 1.)

É o amor, leitores e irmãos meus, o que há de mais trágico no mundo e na vida; o amor é filho do engano e pai do desengano; o amor é o consolo no desconsolo, é o único remédio contra a morte, sendo, como é, irmão dela.

Fratelli, a un tempo stesso, Amore e Morte

Ingeneró la sorte,

como cantou Leopardi.

O amor busca com furor, através do objecto amado, qualquer coisa que está para lá dele e, como não o encontra, desespera.

Sempre que falamos de amor, temos presente na memória o amor sexual, o amor entre homem e mulher para perpetuar a estirpe humana sobre a Terra. E é isto que faz com que não se consiga reduzir 0 amor, nem ao puramente intelectivo, nem ao puramente volitivo, deixando de lado o seu aspecto sentimental ou, se se quiser, sensitivo. Porque o amor, no fundo, não é ideia nem volição: é antes desejo, sentimento; é algo carnal, até mesmo no espirito. Graças ao amor, sentimos tudo 0 que 0 espirito tem de carne.

O amor sexual é o tipo de amor gerador de qualquer outro amor. No amor, e por ele, procuramos perpetuar-nos, e só nos perpetuamos na Terra com a condição de morrermos, de entregarmos a outrem a nossa vida. Os animaizinhos mais humildes, os mais ínfimos seres vivos, multiplicando-se dividindo-se, partindo-se ao meio, deixando de ser a unidade que antes eram.

Mas, esgotada, por fim, a vitalidade de ser que assim se multiplica dividindo-se da espécie, o manancial da vida tem de vez em quando de renovar-se por meio de uniões de dois indivíduos decadentes, através daquilo a que, nos protozoários, sc chama conjugação. Unem-se para voltaram a dividir-se com mais vigor. E todo o acto de geração consiste num deixar de ser, total ou parcialmente, o que se era, um dividir-se, uma morte parcial. Viver é dar-se, perpetuar-se e perpetuar-se e dar-se é morrer. Talvez o prazer supremo não seja mais do que um saborear antecipado da morte, a dilaceração da nossa própria essência vital. Unimo-nos a outro, mas para nos dividirmos; esse abraço mais íntimo não é mais do que uma dilaceração ainda mais íntima. No fundo, o prazer do amor sexual, o espasmo genésico, é uma sensação de ressurreição, de ressuscitar noutrem, pois só noutros podemos ressuscitar, para nos perpetuarmos.

Há, sem dúvida, algo de tragicamente destrutivo na base do amor, tal como se nos apresenta na sua forma animal primitiva, no irresistível instinto que leva um macho e uma fêmea a fundirem as suas entranhas num estreitamento furioso. A mesma coisa que funde os seus corpos separa, num certo aspecto, as suas almas; ao abraçarem-se, odeiam-se tanto quanto se amam e, sobretudo, lutam, por um terceiro ainda sem vida. O amor é uma luta, e há espécies animais em que o macho, ao unir-se com a fêmea, a maltrata, e outras em que fêmea devora o macho logo que este a fecundou.

Tem-se dito do amor que é um egoísmo recíproco.  E, de facto, cada um dos amantes procura possuir o outro; e, procurar através dele, sem então pensar ou pretender isso, a sua própria perpetuação, que é a sua finalidade, o que é isso senão avareza? E é possível que haja quem conserve a sua virgindade para melhor se perpetuar. E para perpetuar algo de mais humano do que a carne.

Porque aquilo que os amantes perpetuam sobre a Terra é a carne de dor, é a dor, é a morte. O amor é irmão, filho e simultaneamente pai da morte, que é sua irmã, sua mãe e sua filha. E é assim que há no mais fundo do amor uma profundidade de eterno desespero, da qual brotam a esperança e a consolação. Porque deste amor carnal e primitivo de que tenho estado a falar, deste amor de todo o corpo com os seus sentidos, e que é a origem animal da sociedade humana, deste enamoramento, surge o amor espiritual e doloroso.

Esta outra forma do amor, este amor espiritual, nasce da dor, nasce da morte do amor carnal; nasce também do sentimento compassivo de protecção que os pais sentem perante os filhos desvalidos. Os amantes não conseguem amar-se até ao abandono de si mesmos, até à verdadeira fusão das suas almas, e não apenas dos seus corpos, senão quando o poderoso pilão da dor triturou os seus corações, misturando-os no mesmo almofariz do sofrimento. O amor sensual fundia os seus corpos, mas separava as suas almas, mantinha-as estranhas uma a outra; mas desse amor tiveram um fruto de carne, um filho. E este filho gerado na morte adoeceu, talvez, e morreu. E aconteceu que os amantes, os pais, sobre o fruto da sua fusão carnal e da separação ou reciproca ignorância espiritual, seus corpos separados e frios de dor, mas as suas almas fundidas na dor, deram-se um abraço de desespero e, da morte do filho da carne, nasceu então o verdadeiro amor espiritual. Ou, então, desfeito 0 laço de carne que os unia, respiraram com um suspiro de libertação. Porque 0s homens só se amam com amor espiritual quando sofreram juntos uma mesma dor, quando lavraram durante algum tempo a terra pedregosa jungidos com o mesmo jugo de uma dor comum. Então conheceram-se e sentiram-se, e consentiram-se na sua miséria comum, compadeceram-se e amaram-se. Porque amar é compadecer, e se o prazer une os corpos o sofrimento une as almas.

Tudo isto se sente ainda mais clara e fortemente quando brota, deita raízes e cresce um desses amores trágicos que têm de lutar contra as diamantinas leis do Destino, um desses amores que nascem a destempo ou fora de estacão, antes ou depois do momento, ou fora da norma na qual o mundo, como é costume, os teria recebido. Quanto mais o Destino e o mundo e as suas leis levantam muralhas entre os amantes, maior é a força com que se sentem atraídos um pelo outro, e torna-se para eles amarga a felicidade de se amarem, e aumenta neles a dor de não se poderem amar aberta e livremente e, do fundo das raízes do seu coração, têm compaixão um do outro, e esta compaixão comum, que é a sua miséria comum e a sua comum fidelidade, inflama e alimenta, ao mesmo tempo, o seu amor. E sofrem o seu prazer gozando o seu sofrimento. E colocam o seu amor fora do mundo, e a força desse pobre amor sofredor, sob o jugo do Destino, leva-os a intuir outro mundo onde não há outra lei para além da liberdade do amor, outro mundo onde não há barreiras porque também não há carne. Porque nada nos enche mais de esperança e de fé num outro mundo do que a impossibilidade de que um amor nosso frutifique de verdade neste mundo de carne e de aparências.

E o amor maternal, que é senão compaixão para com o fraco, para com o desvalido, a pobre criança indefesa que precisa do leite e do colo da mãe? E na mulher todo o amor é maternal.

Amar em espírito e compadecer-nos, e quem mais compadece mais ama. Os homens abrasados na ardente caridade para com o seu próximo, é porque chegaram ao fundo da sua própria miséria, da sua própria aparência, das suas ninharias e, voltando então os seus olhos, assim abertos, para os seus semelhantes, também os viram como miseráveis aparências, periclitantes, e deles compadeceram-se e os amaram.

O homem anseia ser amado ou, o que é a mesma coisa, anseia por ser compadecido. O homem quer que se sintam e se compartilhem as suas penas e as suas dores. Há mais qualquer coisa que uma artimanha para conseguir esmola nesse facto dos mendigos, à beira dos caminhos, mostrarem a quem passa a sua chaga ou o seu coto gangrenado. A esmola, mais do que socorro para suportar os trabalhos da vida, é compaixão. O andrajoso não agradece a esmola a quem lha dá, voltando a cara para não o ver e para o afastar do seu lado, antes agradece mais que se compadeçam dele não o socorrendo, do que socorrendo-o não se compadecendo dele, embora, por outro lado, prefira isto. Vede, então, com que complacência ele conta as suas penas a quem se comove, ouvindo-lhas. Quer ser compadecido, amado.

O amor da mulher, sobretudo, é sempre, no fundo, dizia eu, compassivo; é maternal. A mulher rende-se ao amante porque o sente sofrer com o desejo. Isabel compadeceu-se de Lourenço, Julieta de Romeu, Francisca de Paulo. A mulher parece dizer: «Vem, coitadinho, e não sofras tanto por minha causa!» E, por isso, o seu amor é mais amoroso e mais puro do que o do homem, e mais corajoso e mais duradouro.

A compaixão é, pois, a essência do amor espiritual humano, do amor que tem consciência de o ser, do amor que não é puramente animal, do amor, em suma, de uma pessoa racional. O amor compadece-se e compadece-se tanto mais quanto mais ama.

Invertendo o nihil volitum quin praecognitum, eu disse-vos que nihil cognitum quin praevolitum, que não se conhece nada que, de um modo ou de outro, não se tenha desejado antes, e até é possível acrescentar que não se pode conhecer bem nada que não se ame, de que não se tenha compaixão.

Aumentando o amor, esta ânsia ardorosa de ir mais longe e mais fundo vai-se estendendo a tudo 0 que se vê, a tudo o que se vai compadecendo de tudo. A medida que vais penetrando em ti mesmo, e mais fundo desces em ti mesmo, vais descobrindo a tua própria futilidade, que não és tudo o que não és, que não és o que gostarias de ser, que, em suma, não és mais do que uma ninharia. E ao tocares no teu próprio nada, ao não sentires 0 teu fundo permanente, ao não atingires nem a tua própria infinitude nem, mesmo, a tua própria eternidade, tendo lástima de todo o coração a ti próprio, e inflamas-te em doloroso amor por ti mesmo, matando o que se chama amor-próprio, e não é mais do que uma espécie de deleite sensual de ti mesmo, algo assim como a carne da tua alma a gozar-se a si mesma.

O amor espiritual a si mesmo, a compaixão que uma pessoa adquire para consigo própria, poderá, porventura, chamar-se egotismo; mas é o que de mais oposto existe ao vulgar egoísmo. Porque deste amor ou compaixão de ti próprio, deste intenso desespero, porque, do mesmo modo que não eras antes de nasceres, também depois de morreres não serás, passas a ter compaixão, isto é, a amar todos os teus semelhantes e irmãos, em aparência miseráveis sombras que desfilam do seu nada ao seu nada, chispas de consciência que brilham um momento nas infinitas e eternas trevas. E dos demais homens, teus semelhantes, passando pelos que são mais semelhantes a ti, e pelos que contigo convivem, vais-te compadecer de todos os que vivem, e que até daquilo que, porventura, não vive, mas existe. Aquela longínqua estrela que brilha durante a noite, lá no alto, há-de apagar-se algum dia, e tornar-se-á pó, e deixará de brilhar e de existir. E como ela, todo o céu estrelado. Pobre céu!

E se é doloroso ter de deixar de ser um dia, mais doloroso seria, talvez, continuar a ser sempre o mesmo, e só o mesmo, sem poder ser outro ao mesmo tempo, sem poder ser ao mesmo tempo tudo o resto, sem poder ser tudo.

Se olhares para a universo do modo mais próximo e profundo que puderes olhar, que é em ti próprio; se sentires, e não só contemplares, todas as coisas na tua consciência, onde todas elas deixaram a sua dolorosa marca, atingirás as profundezas do tédio da existência, o poço da vaidade das vaidades. E é assim como chegarás, a compadecer-te de tudo, ao amor universal.

Para amares tudo, para teres compaixão de tudo, do humano e do extra-humano, do que vive e não vive, é necessário que sintas dentro de ti mesmo, que personalizes tudo. Porque o amor personaliza tudo quanto ama, tudo aquilo de que se compadece. Só nos compadecemos, isto é, só amamos, o que se nos assemelha, e assim aumenta a nossa compaixão, e com ela o nosso amor pelas coisas, a medida que descobrimos as semelhanças que têm connosco. Ou, melhor, é o próprio amor, que por si só tende a crescer, o que nos revela essas semelhanças. Se consigo compadecer-me e amar a pobre estrela que um dia desaparecera do céu, é porque o amor, a compaixão, me faz sentir nela uma consciência, mais ou menos obscura, que a leva a sofrer por não ser mais do que uma estrela e por ter de deixar de o ser, um dia. Pois toda a consciência o é de morte e de dor.

Consciência, conscientia, é conhecimento partilhado, é consentimento, e com-sentir é com-padecer.

O amor personaliza tudo o que ama. S6 é possível apaixonarmo-nos por uma ideia personalizando-a. E quando o amor é tão grande e tão vivo e tão forte e transbordante que tudo ama, então, ele tudo personaliza, e descobre que o Todo total, o Universo, também é Pessoa, tem uma Consciência, Consciência que, por sua vez, sofre, se compadece e ama, isto é, é consciência. E esta Consciência do Universo, que o amor descobre personalizando tudo o que ama, é o que chamamos Deus. E assim a alma compadece-se de Deus e sente que Ele se compadece dela, ama-o e sente-se amada por Ele, dando abrigo a sua miséria no seio da miséria eterna e infinita, que é, ao eternizar-se e tornar-se infinita, a própria felicidade suprema.

Deus é, pois, a personalização do Todo, é a Consciência eterna e infinita do Universo. Consciência presa da matéria e esforçando-se por se libertar dela. Personalizamos o Todo para nos salvarmos do Nada, e o único mistério verdadeiramente misterioso é o mistério da dor.

A dor é o caminho da consciência, e é por ela que os seres vivos atingem a consciência de si. Porque ter consciência de si mesmo, ter personalidade, é saber-se e sentir-se distinto dos outros seres, e só se consegue sentir esta distinção com o choque, com a dor maior ou menor, com a sensação do próprio limite. A consciência de si mesmo nã0 é mais do que a consciência da própria limitação. Sinto-me eu mesmo ao sentir-me que não sou os outros; saber e sentir até onde sou é saber onde deixo de ser, e a partir de onde não sou.

E como saber que se existe não sofrendo nem muito nem pouco? Como voltar sobre si, lograr consciência reflexa, senão através da dor? Quando se tem prazer, esquecemo-nos de nos próprios, de que existimos, entramos noutra coisa, alienamo-nos. E só nos ensimesmamos, voltamos a nos próprios, a sermos nós, na dor.

Nessun maggior dolore

che ricordarsi del tempo felice

nella miseria,

faz dizer Dante a Francesca de Rimini (Inferno, v, 121-123); mas, se não há dor maior do que a de nos lembrarmos na desgraça do tempo feliz, não há, por outro lado, prazer em nos lembrarmos da desgraça em tempo de prosperidade.

(“Do Sentimento Trágico da Vida”, Miguel de Unamuno. Círculo de Leitores, 1989)