FERNANDO NAMORA
O Intelectual que lutou pela Liberdade e contra a Censura
SOB «VIGILANCIA HOSTIL»
E de vigilância hostil a atmosfera que o escritor respira. Todavia, também se conhece a tenacidade do escritor em desobedecer-lhe, tomando-a um repto, e enfrentando os possíveis castigos. Terá sido, porém, benévola essa vigilância, coma alguns pretendem fazer crer, permitindo-se, em suma, que o escritor se se realize se nele a chama é mais forte que o regueiro que a pretende apagar, tão-somente podando-lhe uns excessos que a abra, coma arte, até dispensa? Torna-se, enfim, possível uma coexistência entre os condicionamentos e a literatura, quando aqueles não vão a0 ponto de a sufocar? Essa coexistência é sempre uma situação de opressor e oprimido. Não existem justificações válidas para critérios que imponham uma «norma» à criação artística: o critério, chamemos-lhe assim, pertence ao artista, responsável perante si próprio, os outros homens e o tempo. Eles o julgarão.
FERNANDO NAMORA, Encontros, Obras Completas de Fernando Namora, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998. p. 36. (1.ª ed. Porto, Nova Crítica, 1979)
Por Paulo Marques da Silva
NAMORA, UM INDEPENDENTE NO MOVIMENTO LITERÁRIO NEORREALISTA
Fernando Gonçalves Namora (1919-1989) , natural de Condeixa (onde se encontra a sua Casa—Museu), a poucos quilómetros dc Coimbra, foi uma figura de primeira linha no movimento literário neorrealista português, além de se ter dedicado a pintura e ter sido um hábil caricaturista, com que f0i ganhando algum dinheiro ainda como estudante de Medicina, em que se formou, vindo na sua obra literária a narrar as suas experiências de clínico de aldeia, nomeadamente na célebre obra Retalhos da Vida de Um Médico. É apresentado como o autor do «Novo Cancioneiro» e são obras suas que configuram os primeiros lançamentos, quer da coleção referida, quer da coleção «Novos Prosadores». Tenta também atrair para o projeto outros escritores — como Soeiro Pereira Gomes —, além de se lançar em diversas iniciativas conotadas com o movimento.
Sabemos que Namorado foi sempre reconhecidamente um homem com um pendor independente e que resistirá à tentação da militância partidária, o passo mais óbvio, o caminho mais concreto para tantos, no imperativo de lutar contra os «fascismos», ainda mais, para quem gravitou no seio universitário de Coimbra, acompanhado por tantos amigos que acabaram por materializar tal intenção, e vários com um papel preponderante, o que, de resto, lhe valerá algumas incompreensões por parte de alguns deles.
(…)
UMA «RELAÇÃO» OBVIAMENTE TENSA COM A CENSURA
A Censura constituiu uma peça essencial na estrutura organizativa do Estado Novo, não só a nível do aparelho repressivo, mas também a nível da propaganda o do enquadramento politíco—ideológico da população. O regime procurou modelar as mentalidades o condicionar consciências e comportamentos, de acordo com os seus princípios e valores, tentando silenciar ou ocultar tudo o que não lhe interessava.
Daqui resultava quo as ideias, as reivindicações ou as lutas promovidas pelas hostes oposicionistas não chegavam aos seus destinatários, face à censura existente na imprensa e à ausência de liberdade para a exposição das suas razões o dos seus argumentos. A alternativa consistia, com frequência, no recurso à utilização dos panfletos o dos comunicados, elaborados clandestinamente, mas quase sempro com um alcance muito limitado.
Mário Soares afirmará mesmo que a Censura foi a arma mais temível do Salazar, «a sua arma absoluta», com consequências «muito mais devastadoras do quo as violências da própria polícia política». A sua ação incidia primordialmente sobre o meio jornalístico, mas também os escritores e outros artistas, por motivos óbvios, foram particularmente visados. A Censura não se limitava a cortar, proibir ou apreender os seus livros, mas procurava igualmente, como referiu José Cardoso Pires, manter o escritor e a sua obra num manto de silêncio publico ao «isolá-lo da comunidade, retirando-lhe a influência e o prestígio e, acima de tudo, tornando-o perigoso ou prejudicial para o editor».
Fernando Namora lutou contra a Censura ao longo de todo o período do Estado Novo, ficando para a história, à luz dos seus processos na PIDE, a sua participação nos principais protestos levados a cabo pelos intelectuais portugueses.
Apresentamos vários exemplos elucidativos daquilo que afirmamos, socorrendo-nos do mesmo arquivo da Polícia Política. Desde logo, em 1945, o jovem Namora, que deixara a Universidade em 1942, iniciando pouco depois a sua vida profissional, torna pública — como se referiu — a sua adesão ao Movimento de Unidade Democrática (MUD), que clamava, entre varias outras exigências, pela liberdade de imprensa. Na sequência da criação deste Movimento, os intelectuais redigem um manifesto ao pais — conhecido por «Manifesto dos Intelectuais» —, criticando a falta de liberdade dos vinte anos anteriores, incluindo a ausência de liberdade de criação, enquanto requeriam a sua independência e o livre pensamento.
Em 1953, através de um comunicado à imprensa, datado de 4 de novembro (mas cuja publicação foi impedida), nascia a Comissão Pró-liberdade de Expressão, onde os intelectuais portugueses, entre os quais se contava Namora, reclamavam a extinção imediata da Censura em Portugal, circulando um abaixo-assinado para recolha de assinaturas, a fim de ser entregue na Presidência da Republica.
Já na parte final do ano de 1957, em vésperas de eleições, Fernando Namora e diversos outros intelectuais manifestavam o seu repudio pelo facto de os candidatos da União Nacional, não defenderem a abolição da Censura. Fazem-no através de um comunicado que não chega a ver a luz do dia em Portugal, por ter sido censurado.
Ano de 1967, Namora associa-se a muitos outros nomes da oposição, para enviar uma representação ao presidente da Assembleia Nacional, reclamando a aprovação de uma Lei de Imprensa e a extinção da Censura.
Em contexto de eleições para a Assembleia Nacional, no ano de 1969, Fernando Namora subscrevia um documento intitulado «Dos Escritores ao País», obviamente cortado pela Censura, onde se pretendia tornar publico, em dez pontos, o pedido de dissolução da máquina repressiva do regime e o restabelecimento completo das liberdades.
Por fim, em maio de 1971, um grupo de elementos ligados à vida intelectual portuguesa constituía-se na Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão e dirigia-se ao país para lançar um alerta, relativamente à questão das limitações à liberdade de expressão contidas na proposta governamental para uma nova Lei de Imprensa, que se preparava para ser discutida na Assembleia Nacional. O objetivo da Comissão era promover uma tomada de consciência pública quanto à gravidade da situação vivida em Portugal e prevenir o país para os graves prejuízos que resultavam da manutenção da falta de liberdade de expressão do pensamento.
Como é óbvio, estas tomadas de posição tornavam-se arriscadas para os seus promotores. Por exemplo, Papiniano Carlos, considerado o impulsionador do abaixo-assinado da Comissão Pró-Liberdade de Expressão, de 1953, ira receber a visita de uma brigada da PIDE, que apreenderá a representação que se destinava a ser entregue ao Presidente da República e o levará preso. Já o episódio de 1957 dará origem a uma investigação policial e a um relatório circunstanciado, por parte do agente Fernando Moutinho, que, entre diversas outras informações recolhidas, apontava os nomes de Urbano Tavares Rodrigues, Natália Correia e a sua irmã Carmen como os principais responsáveis daquela iniciativa, trazendo à liça também o nome de António Sérgio, que fazia parte da Comissão Promotora do Voto, e que, por esse motivo, não se queria expor para mostrar imparcialidade eleitoral, segundo apurou o agente. Para além destes desenvolvimentos, a PIDE não esqueceu, obviamente, de compilar todas estas informações nos processos individuais dos visados.
Lembramos, ainda, mais alguns episódios da luta de Namora pela liberdade de expressão, com referências apenas aos casos mais conhecidos.
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Retirado do livro, que aconselhamos vivamente a ler: “Brandos Costume – O Estado Novo, a PIDE e os intelectuais”. Círculo de Leitores, 2022.