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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Fernando Oneto fala da sua experiência como preso político

20.04.24 | Manuel

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 Fernando Oneto, membro da «Luar», várias vezes preso pela PIDE/DGS, conta-nos, a nosso pedido, as suas experiências como preso político, durante o tempo em que esteve no Aljube e em Caxias (Entrevista conduzida por Raul Paulo e publicada in “Podium”, 09/1975).

Começou por dizer-nos:

FO - Enquanto estive preso, fui maltratado como todas as pessoas que eram presas. No entanto, o que me custou mais a suportar foi a tortura do sono. Esta tortura foi-me aplicada, de uma vez, durante oito dias e nove noites. Depois, fui espancado três noites seguidas e aplicaram-me mais tortura do sono.

POLÍCIA TECNICAMENTE MUITO MÁ, GOZAVA DE VANTAGEM EXTRAORDINARIA

FO - A tortura do sono foi estudada sob todos os ângulos e já toda a gente sabe qual é a consequência directa no indivíduo que sofre a tortura do sono. Não dormindo, as pessoas não eliminam as toxinas; portanto, estão a ser envenenadas, lentamente, através deste processo. Qualquer indivíduo, ao fim de quatro dias sem dormir, começava a ter alucinações; ao fim de cinco dias, começava a falar sozinho; ao fim de seis dias, começava a entrar num estado de pré-loucura; e ao fim de sete dias, assinava aquilo que eles queriam e dizia coisas que normalmente não diria, etc.

- Aconteceu-lhe alguma vez ficar com alucinações?

FO - Pois com certeza que fiquei, como os outros... Eu via «cow-boys» durante a noite, pessoas a cavalgar e bichos no chão. Mas já está feito o estudo das reacções das pessoas à torturo do sono. Hoje em dia, isso é já suficientemente estudado. É curioso que, antes do 25 de Abril, li num jornal português que um indivíduo, se estivesse sem dormir dez ou doze dias, morria. Na ex-PIDE, estiveram indivíduos muito mais tempo sem dormir e não morreram. O caso máximo que eu conheço são dezoito dias, e refere-se a um militante do Partido Comunista, que não falou nem morreu, e esteve dezoito dias e dezoito noites sem dormir.

- Pode uma pessoa ficar psicológica e mentalmente afectada para a vida, com a tortura do sono?

FO - Pode e fica., de facto. Os médicos têm declarado que as pessoas ficam a sofrer, mais ou menos, afecções psíquicas. Eu, quando estava preso, dava gritos extraordinários, de noite.

Fernando Oneto vira-se para sua mulher e diz-lhe:

FO - Eram os gritos que o Matos falava.

Volta-se novamente para a reportagem de PODIUM e continua:

FO - As vezes ainda tenho pesadelos e dou gritos; mas isso são coisas que ficam gravadas no subconsciente e, em situações não controláveis de sono, vêm ao de cima. De resto, quanto a mim, não tenho qualquer tipo de mazela psíquica.

O QUE ERA A NOSSA EX-POLÍCIA POLÍTICA

A ex-PIDE/DGS tinha, no seu efectivo, 1 director-geral, l subdirector, 1 inspector, inspector-superior, 7 directores de serviço, 15 inspectores-adjuntos, 46 inspectores, 41 sub-inspectores, 159 chefes de brigada, 523 agentes de 1ª classe, 817 agentes de 2ª classe, 46 agentes motoristas, 9 chefes rádiomontadores, 33 radiotelegrafistas de 1ª classe, 68 radiotelegrafistas de 2ª classe, 5 fotógrafos mensuradores, 1 ajudante mensurador, 10 chefes de secção, 1 tesoureira, 20 primeiros-oficiais, 36 segundos-oficiais, 63 terceiros-oficiais, 89 escriturários de 3ª classe, 72 guardas prisionais, 12 guardas prisionais femininos, 181 escriturários-dactilógrafos de 2ª classe, 3 contínuos de 1ª classe, 4 ajudantes de motorista, 7 contínuos de 2ª classe, 7 serventes e mais 7 mulheres pertencentes a um quadro especial feminino. Eram, ao todo, mais de 2300 pessoas a pertencer à máquina repressiva que tanto mal-estar provocou nos portugueses.

Aqui, não se contam os informadores, que se calculam em mais de 20.000.

 

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 Aspecto do museu da Escola Técnica da PIDE em que se vê um cartaz do movimento estudantil contra a repressão fascista (Foto "DL")

- O que pensa sobre a ex-PIDE/DGS?

FO - Há uma quantidade de mitos sobre esta polícia que é preciso os pessoas definirem. A ex-PIDE era uma polícia política que gozava de uma vantagem extraordinária: a faculdade legal de poder dispor do preso durante seis meses sem intervenção estranha à mesma polícia. Uma pessoa era presa e estava, pois, seis meses ao dispor da polícia política, sem assistência de advogado, sem qualquer regalia. Isso, no mundo moderno, só se conhece exemplo igual na Africa do Sul. Na própria vizinha Espanha, a pessoa só pode estar presa, sem culpa formada, durante setenta e duas horas, findos as quais tem de ser entregue a um juiz. Mos em Portugal estava seis meses. A polícia, em Portugal, tinha tempo suficiente para fazer tudo o que quisesse. Cá, o problema do polícia política era muita simples: como a ex-PIDE beneficiava de uma situação legal verdadeiramente excepcional, e ainda porque a polícia, tecnicamente, era muito má, tinha gente de muito má qualidade, à excepção de quatro ou cinco agentes, a polícia não fazia investigação porque não precisava de a fazer. Quer dizer, a polícia, ao contrário de todas as polícias do mundo que investigam e depois prendem, o de cá prendia e investigava em cima do preso. Como? Torturando!

Era tudo muito simples. A polícia suspeitava de uma determinada organização ou de determinado cérebro de uma organização; conseguia detectar esse indivíduo e depois torturava-o até dizer o nome. Depois de dizer o nome, essa pessoa ficava presa... E faziam a mesma coisa com outra pessoa, e outra e outra...

Este era o sistema normal daquela polícia, a qual era extremamente simples a fazer investigações, sem qualquer vigilância judicial ou política. Quer dizer, dispunha do indivíduo a seu bel-prazer. Claro que uma pessoa podia ser presa, em Portugal, por diversos motivos: se fosse por assinar uma carta ao Presidente da República ou ao Presidente do Conselho, a policia, nesse caso, fazia um brilharete, porque chamava lá a pessoa que ficava detida durante um ou dois dias. Tratavam-na muito bem e depois punham-na na rua. Essas pessoas diziam que a polícia era uma coisa formidável! Se as pessoas eram combatentes antifascistas das diversas organizações, dos quais o P.C. foi o que mais duramente sofreu, a PIDE tinha um objectivo: prender a pessoa, que normalmente não falava. Como não falava, esta polícia tinha de ter um sistema que era o de destruir a pessoa. Sempre que fui preso, ninguém me perguntou nada. A pessoa era submetida à tortura do sono e outras torturas, como no tempo do Aljube, em que as pessoas eram metidas em celas de quatro palmos por oito, repito, quatro palmos por oito, sem luz natural.

Eu, só duma vez, estive três meses e meio numa cela dessas. Ninguém faz uma pequena ideia do que é estar preso numa cela com quatro palmos por oito, com quatro paredes e uma tábua que descia e fazia de cama. Ora, tal como eu já disse, a polícia, antes de averiguar o que queria averiguar, tratava de destruir o indivíduo em função da sua resistência. Se ele começasse a falar, não era preciso fazer muita coisa; se não falasse, pois sofria toda aquela gama de torturas, até falar. A tortura do sono foi o processo de tortura que mais dividendos pagou à polícia. No entanto, havia indivíduos que resistiam a ela e não resistiam aos tratamentos, por exemplo, pois da tortura do sono passavam logo para os tratamentos já que era exactamente o necessário para que eles falassem.

Havia outros que resistiam à tortura do sono e aos tratamentos, mas não resistiam ao buraco do Aljube, porque, parecendo à primeira vista não ser uma coisa muito importante, o certo é que dava cabo das pessoas. Havia indivíduos que resistiam a tudo isso, e não havia mais nada a fazer. A polícia política tinha que se aguentar, porque as pessoas não falavam mesmo. Simplesmente, ela dispunha de meios de pressão sobre os presos como raras vezes, em qualquer parte do mundo e em qualquer época da história, alguma organização policial teve sobre um preso, porque era perfeitamente incontrolável. Ninguém podia fazer nada em relação ao preso que estava na PIDE. Só ao fim de seis meses é que podia aparecer um advogado, mas, provavelmente, ao fim desse tempo, só eles tinham sabido, ou não, o que queriam. Isso dependia de várias circunstâncias, uma das quais era a resistência do próprio preso à tortura. Resumindo: a PIDE, que nós, agora, já, temos completamente desmantelada, era isto: prendia a pessoa sob a forma de um indivíduo cheio de força e de moral, e, antes de colher qualquer informação, tratava de destruir esse indivíduo, especialmente sob o ponto de vista de resistência psíquica.

- Acha que aprendeu qualquer coisa sobre a vida durante o tempo em que esteve preso?

FO - Da vida não se aprende nada nas prisões, mas cá fora. Claro que é uma aprendizagem, é uma experiência, mas que não fazia falta a ninguém. Conheço homens que andaram na luta e que nunca foram presos. Isto também é uma coisa que importava desmistificar um pouco. Refiro-me à ideia de considerar o preso político como o máximo da resistência neste país. É verdade que o militante político era conhecido através das prisões que tinha, mas conheço muita gente que fez coisas extraordinárias e que, ainda por cima, nunca foram presos. Esses é que são de louvar. Porque a prisão não fazia falta. Em termos de conspiração, era péssimo, porque o tipo que era preso, imediatamente era detectado, identificado e ficava fichado para o resto da vida. Quer dizer, ficava referenciado, o que dificultava sempre as operações futuras. Mas, evidentemente, nas prisões aprende-se muito, principalmente nos aspectos da solidariedade.

- No que respeita à sua família, acha que ficou afectada com a luta política empenhada pelo seu chefe, que foi preso várias vezes?

FO - Pergunte-lhes.

- Mas pensa que poderiam ter uma vida mais feliz e melhor, em todos os aspectos?

FO - Isso, com certeza. Mas a vida muito melhor que podiam ter, não é uma consequência das prisões, mas de uma opção que eu fiz, a determinada altura, enfim, de uma luta política, com as consequentes responsabilidades. Naturalmente, um indivíduo que entra na luta política e é preso; é solto e volta a ser preso; que depois foge e se exila, tem uma vida, do ponto de vista social e profissional, de grande instabilidade. Portanto, não pode fazer aquilo que se chama uma carreira. Nessa medida, as famílias são, evidentemente, afectadas, porque as pessoas, não tendo a possibilidade de ter uma actividade profissional regular e constante, pois são prejudicadas em relação aos outros que não eram presos e que podiam fazer a sua vida normal. Mas eu julgo que, com o 25 de Abril, as pessoas já se esqueceram do que passaram e do que sofreram.

- A propósito do 25 de Abril. O que é que sentiu quando soube da revolução?

FO -Estava em Paris e ouvi pela rádio, às sete da tarde (hora a que liguei o aparelho), portanto, já com a revolução vitoriosa, e só lhe digo que ia «morrendo da cura». Eu estava a ver que me apagava.

- Soube logo que a revolução era contra o fascismo?

FO - Sim, Aliás, já esperava.

- Já esperava, porquê?

FO - Em primeiro lugar, porque tinha conhecimento da existência, do movimento dos capitães. Em segundo lugar, porque, depois do 16 de Março, não havia dúvida nenhuma de que, mais tarde ou mais cedo, a coisa tinha que detonar em termos de vitória. Em terceiro lugar, porque efectivamente o noticiário da rádio era perfeitamente elucidativo: tinha havido a revolução, o Marcelo estava preso, o Tomás também, o general Spínola, como representante do Movimento das Forças Armadas, formaria a Junta Militar. Por isso, não tive a mais pequena dúvida de que a revolução era a nossa revolução.

- Na sua opinião, o 16 de Março teria sido a isca lançada pelo M.F.A. e que foi mordida pelo regime anterior?

FO - Uma isca não foi. Foi, isso sim, uma acção que correu mal. O M.F.A. era irreversível. Podia até haver dois ou três 16 de Março, que o Movimento acabava por triunfar na mesma. Da história do 16 de Março, não estou bem esclarecido, mas penso que foi uma bomba que detonou fora do tempo, num conjunto de uma salva de artilharia. O detonar dessa bomba foi um acidente. No dia 25 de Abril é que detonou a salva toda. Com estas impressões de Fernando Oneto sobre a PIDE, ficou-nos a certeza de um esclarecimento oportuno. Pensamos voltar com ele, para nos falar acerca da LUAR, organização revolucionária fundada por Palma Inácio.

Raul Paulo

  1. da R. -Como é do conhecimento público, os Pides que se encontram na Penitenciária de Lisboa fizeram um motim, não obstante as invulgares condições de excepção em que se encontram a pagar os seus crimes.

Entrevista publicada in “Podium”, 09/1975)