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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Álvaro de Campos

13.06.22 | Manuel

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(Nascido em dia de Santo António)

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

 

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

 

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

 

*

 

Cruz na porta da tabacaria!

 

Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.

 

Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.

 

*

 

O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual...

 

Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos...

 

Minha juventude perpétua

De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades.

 

(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô,

padre, que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas). (Veio

para Lisboa muito novo...)

 

A capacidade de pensar o que sinto que me distingue do homem vulgar

 

Mais do que ele se distingue do macaco.

(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser.

 

Sim, admito-o,

Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser).

 

Se alguma coisa foi porque é que não é?

Ser não é ser?

 

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,

Em outra maneira de ser?

Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos que pensei ter?

 

Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,

E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

 

Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa. Lisboa, Edições Ática.