Gente com algo em comum: Shaperville e Marikana
Shaperville, 21 de Março de 1960 - Marikana, 16 de Agosto de 2012
O que haverá de comum entre o primeiro-ministro checo, Jiri Rusnok, que manifestou não ter vontade nenhuma de ir ao funeral de Nelson Mandela, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que, depois de ter notificado as autoridades sul-africanas da sua presença, anulou a visita à última da hora por causa dos custos de 1,45 milhões de euros e o PR português que vai ao funeral mas votou (como primeiro-ministro de um governo colaboracionista com o imperialismo) contra a libertação de Mandela, em 1987, quando grassava pelo mundo fora uma onda de solidariedade a favor da luta do povo sul-africano contra o regime odiado do apartheid?
Todos estão do mesmo lado contra um Mandela que defendia a luta armada para derrubar o regime nazi e terrorista do apartheid racista branco, na abominação da luta violenta contra o capitalismo e a burguesia e a favor da continuação das multinacionais a explorar as riquezas e os trabalhadores sul-africanos, como veio a acontecer com um Mandela conciliador. Mesmo depois de morto Mandela não tem a estima da grande maioria dos chefes de estado – que estarão presentes nas suas exéquias fúnebres mais por obrigação do ofício – porque devido ao que ele representou num passado que fez tremer a burguesia branca e pelo amplo apoio e estima que, apesar de tudo, possui entre o povo sul-africano e as democráticas classes médias a nível mundial pelo exemplo de coragem individual decorrente dos 27 anos de prisão.
O que distingue aquelas três figuras atrás referidas é o grau de coerência: enquanto os dois primeiros são coerentes, um, por se assumir como o primeiro-ministro tecnocrata de um governo lacaio de um protetorado germânico; o outro, pela convicção de nazi, sempre nazi, e ser o primeiro-ministro do único estado colonial do mundo; o português não passa de um poltrão (a que se pode juntar o correligionário primeiro-ministro) sempre servil, dobrando a cerviz aos senhores do mundo (não é demais relembrar que Portugal foi o único país que votou ao lado dos EUA e da Grã-Bretanha, onde governavam Reagan e Thatcher, figuras modelo do nosso PR).
Os chefes de estado presentes nas cerimónias do funeral de Mandela fazem-no mais por dever de ofício, por hipocrisia do que propriamente por agradecimento de ter permitido o livre desenvolvimento do capitalismo no seu país pela simples razão de que não esquecem o seu passado de “terrorista” e de ter havido a possibilidade de se desencadear um processo revolucionário após a sua libertação. Na altura, a campanha pela libertação de Mandela foi imposta pela força dos acontecimentos que ocorriam na África do Sul resultante da luta armada prosseguida pelo ANC, o regime branco racista esteve prestes a ser derrubado na rua e a partir daí não haveria controlo por parte do capital internacional com fortes interesses na região, não só pelas reservas fabulosas de matérias-primas como pela posição geoestratégica importante.
A libertação de Mandela era a última manobra, embora de elevado risco, para sabotar a revolução no mais rico e desenvolvido país africano. Se Mandela desempenhou esse papel talvez (não temos elementos para melhor opinião) se deva também à forte corrente já existente dentro do seu partido, mais interessada nas liberdades democráticas e no capitalismo com regras do que num regime e economia socialista com o fim da exploração do povo sul-africano independentemente da cor, do que propriamente a uma posição de iniciativa pessoal. Não nos esqueçamos que se vivia o período da derrota do bloco soviético que culminou algum tempo depois com o derrube do Muro de Berlim.
Reportando Mandela para Portugal e abstraindo do contexto internacional, Mandela seria em Portugal, grosso modo, uma espécie de Álvaro Cunhal não comunista, que não fugiu da prisão e não beneficiou do apoio da ex-União Soviética, e que presidiu à passagem pacífica do fascismo para a democracia de Abril. Não teria permitido que os fascistas fugissem para o Brasil nem os capitalistas medrosos que levaram os capitais e abandonaram as fábricas pela simples razão de que teria garantido a sua segurança. E nem teria desmantelado a PIDE, nem saneado os oficiais fascistas das forças armadas. Teria sido um 25 de Abril mais soft, as empresas que foram nacionalizadas em 1976 não o teriam sido, bem pelo contrário, as que eram do estado, como a CP e os CTT, teriam sido de imediato privatizados e teria havido logo abertura à entrada das multinacionais a fim de aproveitar uma mão-de-obra barata e quase escrava.
Poder-se-á comparar Mandela também a um Mário Soares de esquerda, ou seja, um Mário Soares com uma elevada dose de coragem, sem poltronice e sem corrupção, com elevada humildade e simplicidade, ou seja, com uma boa formação moral e caracter verdadeiramente democrático, no sentido preciso do termo. Claro que os contextos são diferentes, mas a imagem é mais ou menos esta, a conciliação levada ao extremo. Foi o que aconteceu na África do Sul de Mandela pacifista e colaborador com o capital internacional. Contudo houve uma troca, o seu partido, o ANC, foi para o governo, acompanhado pelo PC sul-africano, e criou-se uma classe média e uma burguesia negra à custa do acesso aos lugares da administração pública e da economia. O processo de transformação capitalista da sociedade multi-racial sul-africana completou-se, assim como a própria economia que se abriu ao exterior.
Pese todo o prestígio pessoal de uma longa vida de luta e de sacrifício onde se contam 27 anos de prisão, Mandela não deixará de estar ligado, e de certa forma responsável mesmo que indirectamente (o que acabará por ser reconhecido pelo povo sul-africano mais cedo ou mais tarde quando sentir a crise do capitalismo na sua forma mais cruel) pela situação de extrema miséria de parte substancial da classe trabalhadora e do povo em geral. Actualmente assistimos a situações que foram a marca do apartheid e que teoricamente já não deveriam ter lugar no país do “arco-íris”, das liberdades individuais e da democracia, que é a repressão violenta e brutal sobre os trabalhadores, que sujeitos a condições extremas de miséria e de trabalho se manifestam contra a sua situação.
O massacre de Marikana, ocorrido em Agosto do ano passado, quando mais de 3 mil mineiros das minas exploradas pela britânica Lonmin encetaram uma greve pela subida dos salários e melhores condições de trabalho e tiveram como resposta imediata os ataques caluniosos da central sindical do governo do ANC, deste e do PC sul-africano, e logo a seguir a repressão policial que provocou 44 mortos, uma centena de feridos e trezentos presos, todos eles trabalhadores mineiros e negros, fazendo lembrar os massacres cometidos pela mesma polícia mas ao serviço do regime racista branco, sendo o mais famoso, e que mais contribuiu para o descrédito internacional do regime, o massacre sobre população negra indefesa de Shaperville que se manifestava contra a Lei do Passe.
O massacre de Marikana, pelo que foi e pelo que representa, está para o actual regime de um ANC corrupto como o de Shaperville, ocorrido em 21 de Março de 1960 e onde foram mortas 69 pessoas e feridas outras 180, esteve para o regime do apartheid. Em 1960 havia apartheid político, agora há apartheid económico, mais perigoso e eficaz por mais discreto e difícil de combater. A ONU decretou o dia 21 de Março como o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, mais tarde, com a libertação de Nelson Mandela, foi decretado o dia 18 de Julho, data de nascimento de Mandela, como o Dia Internacional de Mandela (Pela Liberdade, Justiça e Democracia), não esperamos que aquele organismo, inteiramente controlado pelo imperialismo norte-americano, venha alguma vez decretar o dia 16 de Agosto como o Dia Internacional do Trabalhador Sul-Africano (Pela libertação do Trabalho do jugo do Capital).
Ver também: O massacre de Marikana e a era pós-apartheid na África do Sul