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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

GIORDANO BRUNO (1548-1600)

07.02.23 | Manuel

 

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A 8 de Fevereiro, Giordano foi publicamente degradado e excomungado do seio da Igreja. De pés descalços, ajoelhado, com a cabeça inclinada para o chão, ele ouviu, perante a assembleia solene dos cardeais, inquisidores e teólogos, presidida pelo papa e pelo governador de Roma, o veredicto há tanto tempo esperado. Seria queimado vivo, no Campo dei Fiori, oito dias mais tarde.

Erguendo-se em desafio, no fim da sentença, gritou alto e forte: «Vós que pronunciais essa sentença, estareis porventura mais assustados do que eu que a cumprirei.»

Uma última vez, era-lhe dado a exprimir a noção de reviravolta, que invertia os papéis. Gelou o sangue nas veias dos acusadores. Como Acteon, ao surpreender a divindade, já não tinha de procurá-la fora de si próprio.

Imediatamente, braços vigorosos apoderaram-se dele. Mas era a sua última rebelião. A partir de agora, já não ofereceria mais resistência do que as suas cinzas, em breve deitadas ao vento, «de maneira, disseram-lhe, que dele apenas restaria, à superfície da terra, a memória da sua execução».

Todos os seus livros que o tribunal da Inquisição conseguira reunir já tinham ardido num enorme auto-de-fé, em frente de São Pedro de Roma. O que tinha acontecido a As Sete Artes Liberais que queria dedicar ao papa, e ao seu Livro das Conjurações confiscado por Giovanni Mocenigo, em Veneza, e provavelmente entregue aos juízes? Talvez um dia alguém os encontrasse nos arquivos do Santo Ofício de Roma...

Mas então, que ódio teria provocado para que a Igreja o conservasse assim durante anos nos seus tenebrosos calabouços? E verdade que lhe fora concedida uma última oportunidade de sobrevivência. Os inquisidores propuseram-lhe a liberdade em troca do repúdio das suas blasfémias e das suas teorias sobre a pluralidade dos mundos. Com um gesto, recusou-se a falar. Nunca ninguém o censurou pelas suas actividades de hermetista ou pelos seus manuscritos sobre a magia. O crime de abjuração e de ruptura com os juramentos monásticos era secundária. Com efeito, amaldiçoavam-no porque tivera a ousadia de afirmar que a alma podia migrar para outro corpo, num outro sistema solar perdido no universo infinito. Heresiarca, aceitava acabar como pressentira, antes de provocar o mecanismo veneziano. O monte Cicala da sua infância, em frente do Vesúvio, bem lhe tinha dito: «Um dia, voltarás a encontrar o vulcão, e nunca mais o abandonarás».

As suas cinzas confundir-se-iam com a poeira da cidade das sete colinas – presente de diminuto valor, em relação à alegria que sentiria a fundir-se naquela Natureza que cantara com tanta alegria. Não arderia sozinho: os seus livros e os ramos do sobreiro acompanhá-lo-iam na futura fogueira.

Antes da madrugada, mãos febris prepararam a fogueira. Depois o silêncio abateu-se na multidão. Ricos e pobres surgiam de todo o lado, para assistir às festas do Jubileu. Entre eles encontravam-se vários protestantes, nomeadamente o príncipe Frederico de Wurtemburgo.

O pasmo que antecede por vezes as execuções capitais, pairou sobre Roma, solidificou-se em redor do prisioneiro, como uma segunda parede a forrar a sua jaula de cristal.

Em breve, bateriam à porta de Giordano, arrancar-lhe-iam as roupas e enfiar-lhe-iam o sinistro san-benito, camisa de enxofre em forma de escapulário ornado com a cruz de Santo André, de faíscas e de demónios. Furar-lhe-iam a língua, como a tantos outros, para que não fizesse o sermão do seu suplício às testemunhas? A última frase que lançara aos seus juízes fazia-o recear.

Já a carroça que o levava para o Campo dei Fiori se tinha posto em movimento. Na sua grande compaixão, o céu puro que Giordano tanto amara não deixava prever nenhum sinal de chuva. Mantinha-se muito direito, sem ver os milhares de olhares cravados em si. Como Hermes Trismegisto, sabia que a morte era apenas uma passagem para a luz e para a vida, esquecimento das nossas metamorfoses.

Os vivos não morrem, mas, sendo corpos compostos, dissolvem-se. Ora, essa dissolução, não está morta, mas dissolução de uma mistura. E soe se dissolvem não é para serem destruídos, mas para se renovarem.

Qual é de facto a energia da vida? Não será o movimento? Ora, o que existe no mundo que seja imóvel?

Ele pensou: rodopiante nos espaços incomensuráveis, nada se perde, tudo se transforma. Que deslumbramento, no dia em que tivera a certeza de que a matéria não era uma extensão geométrica, mas uma substância manifestada exteriormente sob a forma de espaço e que, na realidade, era apenas puro espírito...

Uma voz ergueu-se do povo, clamando que justiça era feita aos inimigos da Igreja. Giordano sorriu de maneira extática: fora por vezes colérico, ímpio, libertino. Mas não renegava a sua conduta. A sua fé na religião da Natureza, da Luz e do Amor ajudou-o a superar os tormentos que, como a sua obra, se exprimiam com frequência em forma de diálogo, traindo o confronto de pensamentos abundantes nele.

Agora, essas tomadas de consciência contraditórias resolviam-se, com a aproximação da grande clareza na qual se dissolveria. Nele, os gémeos fundiam-se. Castor e Pólux combinavam-se por fim, o mortal e o imortal, o partidário da ordem humana e da ordem celeste. De que furioso combate fora ele o teatro antes que os Dióscoros, reconciliados, se reunissem no mesmo ovo cósmico, para uma viagem fantástica?... Realizava-se finalmente a conjunção dos contrários, sonho das Crianças de Hermes, dos místicos e dos loucos de amor. Mas era preciso permanecer lúcido, até ao momento de levantar voo.

Giordano já vivera aquela morte, ao escrever profeticamente nos Os Furores Heróicos , para Morgana, no qual era Acteon. Sim, era de novo o caçador transformado em veado e devorado pelos seus cães, porque tinha ousado surpreender a divindade na sua nudez. Ao mesmo tempo, os seus pensamentos divinizavam-se; tomava-se a criança perturbada com a louca paixão pela prima Giulia, no cimo do monte das Cigarras.

Aquela que ao mais alto amor elevava o meu pensamento, aquela que devolveu a meus olhos uma outra divindade vil e vã, aquela em que unicamente e tão puramente se manifestam a soberana beleza e o soberano bem.

Foi ela que vi sair da floresta, Diana, a minha caçadora, escoltada por belas ninfas lançadas no meu encalço, para as terras douradas da Campânia. Então disse ao Amor: a esta entrego as minhas armas.

Nonos de Panapolis descrevera exactamente a morte de Acteon, nas suas Dionisíacas: E a Deusa imagina um outro suplício: abrandar as mandíbulas dos cães, e fazer pouco a pouco devorar Acteon vivo, conservando a sua consciência.

Desta feita, por acreditar no que não se pode contemplar, desposava uma imortal. Com a condição de permanecer totalmente consciente, como no amor, apenas até estar uno com a luz infinita.

Com a sensação repentina de submergir de um sonho acordado, Giordano viu-se rodeado por chamas. Então vislumbrou uma outra vida a cintilar ao longe, entre constelações cuja claridade ainda não iluminara os homens. Quantos astros mortos cruzaria ainda, cujo clarão de luz se desloca tranquilamente? Para onde? Ela tem a eternidade para ela. Pensava que era aí, entre entrelaçados de fulgurâncias, as cavalgadas de relâmpagos, tão mais numerosos que os espíritos dos desaparecidos errando desde que o mundo é mundo, sim, era aí, nessa reserva de centelhas sem limites que estava ocultada a Razão. Sentiu fugazmente a nostalgia de Nola, paraíso da sua infância onde o ar cheirava a resina dos pinheiros quentes, a laranja da imortalidade da Arábia feliz e do jardim das Hespérides. Depois pronunciou a fórmula Magico , a do ardente amor mágico e uniu-se em pensamento a Morgana, tão distante e tão próxima. Mas entre esse éden e as suas encarnações futuras, eram só pré-histórias...

As almas delicadas constataram que o filósofo fora «entregue a Vulcano», segundo a fórmula elegante. Um espírito forte, Fusilius, exclamou: «Assim, queimado vivo, este homem padece miseravelmente, para que possa contar, aos outros mundos por ele inventados, de que maneira os Romanos tratam os blasfemadores». E acrescentou: «Não morremos consumidos pelo fogo, mas sufocados pelo fumo, pois o fogo é mais frio do que quente».

Reuniram-se vários luteranos no meio da populaça. Perdidos na multidão do Campo dei Fiori, dois giordanisti murmuraram que a morte do seu mestre era o símbolo de todos os crimes contra o Espírito. Como Giordano lhes ensinara, eles mudariam a sua identidade, apagariam os seus passos, e legariam uma herança ao mundo.

Nesse fim de tarde, o sol ainda ficou mais avermelhado no céu de Roma.

(Ver in “O HOMEM DE FOGO”, Romance histórico sobre a extraordinária vida de GIORDANO BRUNO” de Francesca Y. Caroutch. Ed. Esquilo. 2004)

NOTA: Em Portugal, da bibliografia de Giordano Bruno, apenas se encontra publicada a obra Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos com a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian.