Guerra atómica e o fim da humanidade
Talvez fosse mais consistente supor que uma humanidade que produziu a bomba (atómica) já está espiritualmente morta e que é a consciência da realidade e não a possibilidade dessa morte que devemos começar a pensar.
Giorgio Agamben*
Em 1958, Karl Jaspers publicou um livro sob o título “A bomba atómica” e o futuro da humanidade em que pretende questionar radicalmente – como diz o subtítulo – a consciência política do nosso tempo. A bomba atómica – ele começa na introdução – produziu uma situação absolutamente nova na história da humanidade, colocando-a diante da alternativa inevitável: "ou toda a humanidade será destruída fisicamente ou o homem deve transformar sua condição ético-política". Se no passado, como nas primeiras comunidades cristãs, os homens fizeram "representações irreais" de um fim do mundo, hoje, pela primeira vez em sua história, a humanidade tem a "possibilidade real" de se aniquilar e a vida na Terra. Essa possibilidade, mesmo que os homens não pareçam percebê-la plenamente, só pode marcar um novo começo para a consciência política e implicar “um ponto de virada em toda a história da humanidade”.
Quase setenta anos depois, a "real possibilidade" de autodestruição da humanidade, que parecia abalar a consciência do filósofo e envolver imediatamente seus leitores (o livro foi amplamente discutido) parece ter se tornado um facto óbvio, que jornais e políticos evocam todos os dias como uma eventualidade absolutamente normal. Ao falar de uma emergência – em que a excepção se torna, como sabemos, a regra – o evento que Jaspers considerava inaudito é apresentado como uma ocorrência totalmente banal da qual cabe aos especialistas avaliar a oportunidade e a iminência. Uma vez que a bomba deixou de ser uma "possibilidade" decisiva para a história da humanidade e, ao invés disso, nos interessa de perto como uma "oportunidade" entre outras que definem uma situação de guerra, será bom então reconsiderar a questão desde o início, que talvez não tivesse sido colocada em seus próprios termos.
Treze anos depois, em um ensaio significativamente intitulado The Apocalypse Disappoints, Maurice Blanchot voltou a questionar o problema do fim da humanidade. E o fez submetendo as teses de Jaspers a uma crítica discreta, mas não menos eficaz. Se o tema do livro era a necessidade de uma mudança de época, é surpreendente que "da parte de Jaspers, no livro que deveria ser a consciência, a retomada e o comentário dessa mudança, nada mudou – nem na linguagem , nem no pensamento, nem nas fórmulas políticas, que se conservam e na verdade se bloqueiam em torno dos preconceitos de uma vida, uns muito nobres, mas outros muito restritos... um pensamento inteiramente novo, não renovou a linguagem que o expressa e produz apenas considerações parciais e partidárias na ordem política ou urgentes e excitantes na ordem espiritual, mas idênticas àquelas que se repetem em vão há dois mil anos?”. A objeção é certamente pertinente, pois não só o livro de Jaspers se apresenta como uma ampla monografia académica que pretende examinar o problema em todos os seus aspectos, mas o que o autor pretende opor à destruição é o clichê de "uma paz universal sem bombas, com uma nova vida economicamente baseada na energia nuclear”. Não menos singular é que a dominação totalitária do bolchevismo (social-fascismo), com a qual é impossível chegar a um acordo, seja ladeada pela bomba atómica como um perigo igualmente mortal.
O facto é, Blanchot parece sugerir, que tal perspectiva apocalíptica é necessariamente decepcionante, porque apresenta como um poder nas mãos da humanidade algo que, na verdade, não é tal. É, de fato, “um poder que não está em nosso poder, que indica uma possibilidade da qual não somos mestres, uma probabilidade – digamos que é provável-improvável – que expressaria nosso poder apenas se o dominássemos com segurança. Por enquanto, porém, somos tão incapazes de dominá-lo quanto de desejá-lo, e por uma razão óbvia: não somos senhores de nós mesmos, porque essa humanidade, capaz de ser totalmente destruída, ainda não existe como um todo”. De um lado, um poder que não pode ser poder, de outro, uma comunidade humana como sujeito reivindicado desse poder, "que pode ser suprimido, mas não afirmado ou que de alguma forma só pode ser afirmado após seu desaparecimento, pelo vazio, impossível de apreender, desse desaparecimento, algo, portanto, que não pode nem mesmo ser destruído, porque não existe” (p. 124).
Se, como parece inegável, a destruição da humanidade não é uma possibilidade que a humanidade dispõe conscientemente, mas permanece confiada à contingência de decisões e avaliações em grande parte aleatórias por este ou aquele chefe de Estado, o argumento de Jaspers é então destruído desde seus alicerces, porque os homens que não têm de facto a capacidade de se autodestruir não podem sequer se conscientizar dessa possibilidade de transformar sua consciência ética e politicamente. Jaspers parece aqui repetir o mesmo erro que Husserl havia cometido quando, em uma palestra de 1935 sobre "A filosofia e a crise da humanidade europeia", ao identificar a causa da crise nos "desvios do racionalismo", ela é melhor definida como a tarefa de guiar a humanidade em seu infinito progresso em direção à maturidade. A alternativa aqui já claramente formulada entre "um desaparecimento da Europa cada vez mais estranha a si mesma e à sua vocação racional" e um "renascimento da Europa" em virtude de "um heroísmo da razão" trai a inconfessável consciência de que onde há necessidade para o "heroísmo" não há mais lugar para essa "vocação racional" (da qual se especifica que distingue a humanidade europeia do "papu selvagem", pelo menos na medida em que este difere de uma besta).
O que uma razão recta não tem coragem de aceitar é que o fim da humanidade europeia ou da própria humanidade, entregue a aspirações anódinas e vãs, que deixam intacto o princípio que é responsável por ele, acaba por derrubar, como Blanchot adivinhou, em "um simples facto do qual não há nada a dizer, excepto que é a própria ausência de sentido, algo que não merece exaltação, nem desespero e talvez nem atenção". Nenhum evento histórico – nem a guerra atómica (ou, para Husserl, a Primeira Guerra Mundial), nem o extermínio dos judeus e certamente nem a pandemia – pode ser hipostasiado em um evento de época, se não se tornar um evento incompreensível e vazio idolum historiae, que já não se pode pensar nem enfrentar.
É necessário, portanto, abandonar sem reservas o argumento de Jaspers, que paga a incapacidade da razão ocidental de pensar o problema de um fim que ela mesma produziu, mas que de modo algum é capaz de dominar. Diante da realidade de seu próprio fim, tenta ganhar tempo, transformando essa realidade em uma possibilidade que remete a uma realização futura, a uma guerra atómica que a razão ainda pode evitar. Talvez fosse mais consistente supor que uma humanidade que produziu a bomba já está espiritualmente morta e que é a consciência da realidade e não a possibilidade dessa morte que devemos começar a pensar. Se o pensamento não pode colocar razoavelmente o problema do fim do mundo, é porque o pensamento está sempre situado no fim, é a cada instante uma experiência da realidade e não da possibilidade do fim. A guerra que tememos está sempre em andamento e nunca terminou, pois a bomba uma vez lançada em Hiroshima e Nagasaki nunca deixou de ser lançada. Só a partir dessa consciência o fim da humanidade, a guerra atómica, as catástrofes climáticas deixam de ser fantasmas que aterrorizam e paralisam uma razão incapaz de compreendê-los e aparecem pelo que são: fenómenos políticos sempre actuais em sua contingência e em seu absurdo, que justamente por isso não devemos mais temer como uma fatalidade sem alternativas, mas podemos enfrentá-los cada vez de acordo com as instâncias concretas em que surgem e as forças que temos para combatê-los ou escapar deles. É o que aprendemos nos últimos dois anos e, diante de pessoas poderosas cada vez mais incapazes de governar a emergência que eles mesmos produziram, pretendemos valorizá-la.
4 de Outubro de 2022
(Tradução livre)
*Filósofo italiano
https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-la-guerra-atomica-e-la-fine-dell-u2019umanita