INHAMINGA - O Último Massacre
por Jorge Ribeiro
NOTÍCIAS DO MASSACRE
Dia 9 de Fevereiro de 1974, um sábado. O responsável pela Fábrica de Cimento de Nova Maceira, no Dondo, chega a Muanza, sul de Inhaminga. Acompanhado de um agente da PIDE/DGS, o engenheiro Góis vem visitar a pedreira de calcário que abastece aquela unidade industrial. Desloca-se às ordens do patrão, António Champalimaud, que pretende saber “O que se passa” neste lugar periférico da Gorongosa.
Na frente da pedreira, o director da Cimenteira depara-se com um cenário montado pelo seu gerente em Muanza, um branco de nome Jacinto. Doze corpos de nativos, passados pelas armas, jazem espostejados por terra “De forma a que todos vejam o que acontece a quem apoiar os terroristas”.
Jacinto orienta, no local, uma força de matança em série constituída por elementos da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Moçambique - OPVDCM, acolitados por efectivos da 2.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6221, incumbidos de “montar segurança à pedreira”.
O engenheiro confere, num ápice, a informação que desliza pela cidade da Beira há já algum tempo e chegou agora de forma mais consistente aos ouvidos no Dondo. “Centenas e centenas de homens, arrebanhados em inúmeras aldeias de Manica, da Zambézia e, sobretudo, de Sofala, estão a ser sumariamente executados em Muanza”.
O proprietário da serração em Cheringoma mais próxima de Muanza está presente nesta visita ao complexo da pedreira. O seu nome é José Mendonça Teixeira e pede para falar. Garante ao administrador vindo de Nova Maceira que “Este sistema de limpeza já vigora há uns meses e é o mais eficaz para acabar com a guerra”. Acrescenta que “As valas, lá atrás, já têm à volta de uns três mil turras”. Um número redondo que o colaborador de Champalimaud já trazia na cabeça.
O madeireiro Teixeira, o subchefe da OPVDC, o furriel do Destacamento, o PIDE da Lusalite e o gerente Jacinto olham fixamente o enviado da Fábrica. Sem pestanejar. Permanecem assim até o silêncio se esfumar com a ruidosa chegada, lá atrás, de mais um camião carregado de pretos.
O ACELERAR DA GUERRA
Inhaminga situa-se a cerca de 60 km de Muanza, distância assinalada ainda em milhas ao longo da linha de caminho de ferro que sobe da Beira para Sena. Continuando, depois, paralela ao rio Zambeze, até Moatize.
No distrito de Tete, quando se atingiu o mês de Agosto de 1973, a FRELIMO tinha conseguido saltar para a margem direita do Zambeze, superando um obstáculo formidável: a barragem de Cabora Bassa e a sua albufeira. Avançou para sul e entrou em Manica. E no início de 1974 encontrava-se às portas de Vila Pery. Para leste, descendo do Niassa, a guerrilha completava o efeito de tenaz com a travessia da extensa Zambézia, reforçando de forma expressiva a sua acção em Sofala.Objectivo: Beira.
Em Inhaminga, o primeiro relatório da tropa portuguesa referindo um ataque directo ao exército colonial data do último dia de Julho, cinco meses antes. No cruzamento Mazamba-Goronga, a 40 km da vila, foram registados dois feridos numa emboscada. A resposta foi desproporcionada, para o que concorreu o trabalho complementar da PIDE/DGS.
Os soldados portugueses invadiram aldeias, arrasaram e incendiaram todas as palhotas. Os pides seleccionaram adultos para serem torturados, na mira de obter informações. O chefe tribal foi barbaramente espancado na situação de pendurado de uma árvore pelos pés. No final do suplício levaram o idoso, ainda vivo, para uma prisão na Beira. A população - velhos, mulheres e as suas crianças -fugiu aterrorizada. Os novos alistaram-se na FRELIMO, como aconteceu, entre outros lugares, em Nhansole com catorze rapazes.
A distribuição estratégica dos grupos de guerrilha em Sofala tomou-se perceptível nos dois ataques seguintes, a 16 e 17 de Agosto. Em menos de 24 horas, duas Berliet do Exército foram alvejadas em Massanza, resultando feridos, com gravidade, três soldados portugueses. Um jipe, lotado de agentes da PIDE/DGS, foi baleado 7 km para sul de Muanza. De Muanza a Massanza distam cerca de 100 km.
No rescaldo do primeiro ataque sofrido, a tropa colonial atingiu mortalmente uma moleira que, no momento, assomava à picada com um filho ao colo. Que também morreu. Os militares assaltaram também a escola da Missão prendendo a turma inteira. O professor Carlito Chapo e os seus alunos foram todos levados para o quartel em Inhaminga onde, no dia seguinte, sofreram sevícias pelos mesmos agentes da PIDE/DGS que sobreviveram ao ataque da guerrilha em Muanza.
Na terça-feira 21, ainda nesse mês de Agosto, o presidente da Câmara de Inhaminga deslocou-se à Missão e intimou o assistente religioso Jan Tielemans para ser interrogado, "De hoje a oito dias", na delegação da PIDE/DGS na Beira. Este missionário, que nos últimos anos desenvolvera com sucesso um projecto agrícola no Lundo, foi acusado de "possuir documentos sobre os acontecimentos de Viriamu, em Tete, no ano passado".
DA TORTURA AO NAPALM
Até final do ano, lnhaminga viveu horrorizada o clima angustiante da guerra suja que alastrou, de forma progressiva, a esta região. Penosamente, o Comando-Chefe tentava transplantar a experiência de Nangade - símbolo da empresa dos "aldeamentos" no Rovuma - para a Zona Operacional de Tete - ZOT, e para o Comando Territorial do Centro - CTC. O plano consistia em "criar uma barreira intransponível ao terrorismo no seu caminho para Sul". Mas os guerrilheiros já se encontravam a percorrer, sem dificuldade, esses mesmos caminhos disputando as mesmas populações.
Nas margens do rio Bawa, em Thombo, um administrador de Posto mais inflamado antecipou-se ao programa de concentração das populações e proclamou a criação pessoal de um aldeamento em pleno coração da tribo Suere. De novo, os jovens partiram para o mato, e os mais velhos recusaram ser "aldeados". A reacção da FRELIMO veio a seguir, através da destruição das viaturas da tropa que patrulhavam a construção desse aldeamento privado.
Sem aviso prévio, a companhia de caminhos-de-ferro Trans-Zambezia Railways - TZR despediu em Novembro a maior parte dos trabalhadores das bombas de água e outro pessoal que operava ao longo da Linha de lnhaminga. Os poucos que não foram "mandados embora", a TZR despachou-os, igualmente sem qualquer explicação, para instalações de que esta multinacional dispunha no Corredor da Beira, muito longe das suas habitações. Foram substituídos por soldados rodesianos que ocuparam postos nas bombas de água de Mazamba, a 25 km de lnhaminga, Nhamatope, mais para norte, e Muanza, a sul. O medo cresceu nos funcionários da TZR deslocalizados.
Em Novembro de 1973, o Quartel-General em Nampula ordenou ao batalhão estacionado em lnhaminga um "novo plano de acção que devia passar ao terreno de imediato". E a Companhia de Comando e Serviços do BART 6221 deu início ao "reconhecimento ofensivo e destruição de palhotas" traçado na mesma ordem superior. A devastação começou em Nhantaze, perto do rio Timbuine, 30 quilómetros para o interior da Goronza, a ocidente de Muanza.
Ao mesmo tempo, a PIDE/DGS decidiu reforçar a sua rede de agentes e operacionais em lnhaminga. Os seus informadores deslocam-se constantemente às aldeias onde, de palhota em palhota, lêem avisos escritos em língua Sena onde se acusam os camponeses de "fornecer alimentos aos terroristas". No final de cada incursão no mato, com o apoio da tropa, os pides regressavam sempre a Inhaminga com várias famílias detidas, "para interrogatório" e martírio.
Em Dezembro, a força aérea da Rodésia - Special Air Service - estendeu os bombardeamentos, incluindo com napalm, à faixa que vem de Tete até Inhaminga,abrangendo a parte norte da Gorongosa. Os ataques dos dias 22, 24, 26 e 29 destacaram-se pela grande intensidade de fogo. No dia seguinte ao Natal, a Coluna da 1.ª Companhia do BART 6221, em missão de reabastecimento a Sena, accionou uma mina que destruiu a Berliet à cabeça e deixou cinco dos seus homens moribundos.
A GUERRILHA ATINGE A BEIRA
Primeiros instantes de 1974. O Comandante-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, General Tomás Bastos Machado, festeja, discretamente, no aquartelamento do Fingoé, a "passagem de ano".
As comunicações são péssimas, mas o oficial de quatro estrelas está rodeado de forte dispositivo de tropas especiais que lhe garantem, ao som do conjunto «Os Unimogues do Ritmo», que toca no refeitório, celebrar em segurança a entrada de mais um ano de guerra em Moçambique.
No momento de erguer as improvisadas taças de plástico com cerveja morna, Tete profundo, a FRELIMO lançava o "fogo de artifício" na linha para Inhaminga. Uma série de explosões fez descarrilar comboios em Inharuca, e entre Machipanda e Beira. O número de feridos desta obriga a arrancar de Manica uma composição de socorro, que outro ataque do Inimigo também imobiliza, rapidamente. A oito quilómetros daqui, potentes rebentamentos projectaram pelo ar duas chaimites do exército. O dia de Ano Novo não acaba sem a destruição das bombas de água onde, em Novembro, a TZR tinha substituído guardas moçambicanos por rodesianos.
Na cidade da Beira há já guerrilheiros - alguns armados - que se passeiam pelas ruas principais, jantam nos restaurantes do cais, vão ao cinema no Scala ou no Olympia. Na manhã seguinte, os representantes da TZR sobrevoam de avioneta as bombas de água destruídas. Cantante Pinho, engenheiro-chefe da companhia, Elídio Tavares, director, e José Augusto Barros, administrador, declaram as bombas "irreparáveis".
A PIDE/DGS abre novas instalações em Inhaminga, inauguradas com a detenção do Superior da Missão Católica, padre holandês Josep Martens, "para efeitos de interrogatório".
É ano velho em Inhaminga.
O CALENDÁRIO DA AGONIA - 1974
1 de Janeiro. A 1.ª CART montou segurança à Ponte Dona Ana sobre o rio Zambeze, que liga Sena a Mutarara. Trata-se da maior ponte ferroviária de toda a Africa Austral - 3750 metros -, construída nos anos 30 pelo engenheiro Edgar Cardoso.
2 de Janeiro. O Exército chega a Inharuca para dar início à "Operação de salvamento e recuperação do descarrilamento do comboio ocorrido na passagem de ano. Reza a Ordem de Serviço que Dois grupos de combate da 2.ª CART fazem a abertura da linha lnhaminga - Vila Fontes motivada por em 3123H30DEZ73 o comboio Sena-Beira ter accionado uma mina em lnharuca (3503,5.1730,5) (Operação Libélula 1). Durante esta operação foi capturado um elemento suspeito que transportava dentro de um saco uma caçadeira desmontada. Na mesma data, UM grupo de combate da 2.ª CART deu escolta ao engenheiro da TZR até lnhatope e Mazamba onde a 31DEZ duas acções IN tinham destruído as bombas de água da TZR - Operação Libélula 2".
3 de Janeiro. A bomba de água na Estação de Inhaminga foi alvo de ataque e ficou seriamente danificada. Por esse motivo, a tropa colonial deteve alguns transeuntes acidentais transportando-os para a esquadra da polícia onde, na condição de suspeitos, foram violentamente agredidos. Nestes calabouços encontrava-se sem culpa formada o régulo de Massanza. A sua situação foi denunciada pelo Padre Martens quando este perguntou às autoridades o porquê da gritaria lancinante que continuamente ecoava, dir-se-ia, por toda Inhaminga. Eram as mulheres ali detidas que, dessa forma, procuravam, e conseguiram, chamar a atenção sobre o seu chefe tribal.
4 de Janeiro. Dois grupos de combate da 2.a CART iniciaram a Operação Libélula 4 com a finalidade de dar protecção, durante parte do seu percurso, a um comboio com materiais de construção para a barragem de Cabora Bassa.
5 de Janeiro. A 1.ª CART dá por concluída a Operação COLINA 4, "um reconhecimento ofensivo de 4 dias que terminou com a destruição de 30 palhotas".
6 de Janeiro. Chega a Inhaminga nova composição ferroviária com material para a barragem, desta vez acompanhada por militares do Comando das Cargas Críticas, estrutura com efectivos e vagões preparados para defesa do comboio com fogo anti-aéreo, dirigida directamente pelo Comando-Chefe em coordenação com o Comando Operacional da Defesa de Cabora Bassa. Partira da Beira e registava já irremediável atraso pelo trabalho de desactivação de várias minas detectadas ao longo da linha. Comboio e Comando foram ainda alvo de fogo cerrado na própria estação de Inhaminga.
7 de Janeiro. Dez quilómetros após a retoma da marcha do comboio, à passagem da Milha 104, a guerrilha accionou à distância novo engenho explosivo que, desta vez, destruiu os carris numa distância de 20 metros. A PIDE/DGS entendeu castigar mais uma vez o professor de Massanza, preso desde 16 de Agosto, agora como "suspeito-implicado" no recente atentado ao "comboio para a barragem". As agressões com matracas de borracha e cintos com fivela, os polícias juntam, a partir desta data, um novo aparelho recebido de Lisboa - uma "máquina de choques eléctricos".
8 de Janeiro. "Um grupo de combate da 2.ª CART iniciou a Operação Libélula 5 com a finalidade de reconhecimento ofensivo e perseguição a um grupo inimigo que em 0721H30 atacou a pedreira da Companhia de Cimentos de Moçambique na Muanza. Neste dia, a 1.ª CART efectua a Operação COLINA5, nomadização e emboscada que terminou com a destruição de 8 palhotas". Neste dia, um avião DC47/Dakota da FAP, ido da Beira para Vila Cabral, foi abatido antes de chegar ao destino.
12 de Janeiro. 1.ª CART faz "Operação COLINA 7; nomadização e emboscada que terminou com a destruição de 20 palhotas e a captura de 7 elementos que tinham desertado do Centro de Instrução de Grupos Especiais (GE) durante a recruta no Dondo".
14 de Janeiro. As autoridades em Inhaminga reúnem e combinam, no decorrer da semana que hoje começa, tomar várias "medidas de defesa e prevenção". O comandante da Companhia de Artilharia ordenou a "evacuação de toda a população que reside perto da linha do caminho-de-ferro entre Santa Fé e a Milha 100. Mais decretou recolher obrigatório em Inhaminga a partir das 20 horas, para os brancos, e das 18 horas, para os pretos". Estes, durante as "buscas diárias realizadas pelas NT" - Nossas Tropas às suas habitações, serão avisados do "perigo de morte que corre todo aquele que seja visto nas imediações do caminho-de-ferro". O coordenador da PIDE/DGS, chefe Gorgulho, determinou "aplicar o método dos choques eléctricos na cabeça e no sexo não apenas aos adultos mas também às crianças" que, no entanto, serão poupadas a esta tortura "se confessarem ter visto os pais a fornecer alimentos aos terroristas".
20 de Janeiro. A l.a CART cuml)riu a Ol)eração COLINA 11, nomadização e emboscada. "Durante esta operação foram destruídas 60 palhotas e libertada do controle IN uma mulher".
23 de Janeiro. As 3h30, uma hora antes do nascer do Sol, a FRELIMO atacou o aquartelamento do Exército em Inhaminga. O telhado do refeitório foi destruído e as janelas todas estilhaçadas. Os guerrilheiros afastaram-se. Não houve baixas, mas a tropa foi incapaz de qualquer reacção. Só duas horas depois soldados saíram à rua e abateram com rajadas dois homens que passavam a caminho do seu trabalho - Catemo, o pintor da TZR, e Creva, funcionário municipal da Inspecção da Madeira, ambos pessoas muito conhecidas na comunidade de Inhaminga. A população branca, em pânico com a "acção terrorista", manifestou-se logo nessa manhã junto do aquartelamento metralhado. O comandante reagiu, aos primeiros gritos na rua, determinando que os corpos dos cidadãos pretos Catemo e Creva permanecessem expostos na via pública durante todo o dia, e justificou a sua decisão com a necessidade de "mostrar a determinação do Exército em defender as famílias do terrorismo". Os brancos que se juntaram no local exigiram, ali mesmo, que a tropa fosse destruir a bomba de água da Missão. Os padres foram ruidosamente acusados de "apoiar os guerrilheiros".
24 de Janeiro. Chegou a Inhaminga o Governador da Beira, Coronel Souza Telles, "para se inteirar da situação e tratar de ouvir as queixas dos brancos". É-lhe exigida "atitude firme contra os missionários", insistentemente acusados de proteger a guerrilha e de esconder os seus elementos dentro da própria Missão, alimentando-os e prestando-lhes cuidados aos ferimentos de guerra. De maneira exacerbada, os colonos também garantiram ao Governador que "a Missão sempre funcionou como depósito de armas e munições da FRELlMO". Neste contexto, o alto representante do Governo Geral autorizou uma minuciosa revista a todas as instalações da Missão em Inhaminga. As buscas foram acompanhadas pelo Presidente da Câmara, pelo chefe da PIDE/DGS, pelo intendente da OPVDCM, pelo próprio Governador da Beira e por muitos brancos armados que devassaram a instituição religiosa durante longas horas. Nada foi encontrado que comprometesse os religiosos. Apesar disso, o Presidente da Câmara foi incumbido de notificar o Superior da Missão de que, a partir de agora, os padres e os seus colaboradores não poderiam sair do centro urbanizado de Inhaminga. O padre Martens considerou que a situação assim criada correspondia a "prisão domiciliária". E recordou, acautelando decisões futuras das mesmas autoridades, que a bomba de água da Missão abastece não apenas a comunidade missionária mas também a maior parte das famílias brancas que vivem em Inhaminga. O Superior foi obrigado a aceitar por escrito as ordens recebidas, sob a ameaça de "sofrer medidas mais graves, caso continuasse a alegar neutralidade em relação ao conflito". O Governador deu por finda a vistoria, sugerindo aos missionários que "Em vez de apoiarem os selvagens, deveriam antes dedicar-se a convencer os gentios a deslocar-se para os aldeamentos construídos para eles pelo Governo". Cá fora, durante o dia, foram espalhados por áreas estratégicas da vila - como as imediações do aquartelamento - panfletos redigidos em português, em inglês e em chisean, exigindo a libertação do chefe tribal Moisés Pangacha. A guarda ao quartel, que não conseguiu detectar quem distribuíra os papéis, acabou por abrir fogo intimidatório sobre os barracos onde se depositam os "terroristas" antes de serem transportados para as valas de execução, nas imediações do aeródromo. Alguns morreram, por antecipação.
28 de Janeiro. Na Missão, o número de crianças que ali procura curativos aos flagelos sofridos por parte dos agentes da PIDE/DGS aumenta de dia para dia. A Irmã Joana anotou o nome de Nhamataka Miti, 10 anos de idade, e Tembo Lole, de 8, com dedos a sangrar por lhes terem sido arrancadas unhas. Haviam respondido Não à pergunta "Os turras estão lá em tua casa?" Os miúdos não recorreram ao hospital porque "Também tem pide". Hoje, um helicóptero da Força Aérea munido de altifalante passou amanhã a convocar "Toda a população de Massanza para se juntar no último dia de Janeiro, quinta-feira, dentro de três dias". Folhetos coloridos caídos do céu reforçavam que "Os habitantes vão ser deslocados para novos aldeamentos", ainda por construir. A FRELIMO atacou pela terceira vez o aquartelamento do Exército em Inhaminga. Ao cair da tarde chegaram 60 GE - Grupos Especiais apresentados pelo Governador do Distrito como "parte de um contingente de 650 já deslocados do Norte, lá de Cabo Delgado, para o Dondo".
31 de Janeiro. Manhã cedo, várias Berliet partiram de Inhaminga para Massanza com o objectivo de recolher a população local, conforme o anunciado três dias antes. Quando a tropa lá chegou a povoação encontrava-se deserta. Os seus habitantes tinham partido para o interior da Gorongosa. A Norte, "Grupo IN emboscou a coluna da 1.ª CART de reabastecimento a Sena sem consequências".
OS CAMIÕES DA MORTE
1 de Fevereiro. O 8º. período de actividades do BART 6221, que hoje tem infcio, não trouxe alterações de monta em relação ao previsto no papel. Dá ênfase à necessidade de "operações conjuntas CCS/2ª. CART" mas, sobre a situação de Muanza, o Comandante Tenente-Coronel Rubi Marques decide "Manter uma secção de combate na Pedreira com reforço da sua auto-defesa" - a Operação Ovo 6.
2 de Fevereiro. Seis carruagens de um comboio misto, passageiros e mercadorias, oriundo da Beira, foram pelos ares na passagem pela Milha 65, a cerca de 10 km da estação de Cundué. A PIDE/DGS chegou ao local e prendeu um seminarista de Murraca, o único preto que viajava no comboio sinistrado.
3 de Fevereiro. A Milha 94, mais perto de Inhaminga, os guerrilheiros interceptaram João Carrelo, mecânico da empresa Codauto, que viajava de jipe para a Beira. Nada se sabe sobre a sua reacção, mas quando tentou fugir foi abatido. Acorreram alguns soldados que prontamente detiveram, de forma avulsa, homens e mulheres atraídos ao local pela curiosidade dos tiros. Neste domingo, a morte do mecânico Carrelo esvaziou de colonos a primeira missa na Missão, mas encheu o centro da vila com uma pequena multidão de brancos assustados. Em cólera, voltaram a dar à tropa e à polícia "exemplos de como se deve tratar os pretos". Três africanos, que se preparavam para entrar no autocarro de Quelimane, foram encurralados na padaria, perto da paragem, e sovados "até o sangue espirrar". Os colonos repetem que estas agressões, "em defesa das suas famílias", provam o "Ódio ao terrorismo" que sentem. No final arrastaram as vítimas até à entrada da Esquadra da polícia e deram início a um cortejo automóvel que, por entre gritos e disparos para o ar, passeou pelas ruas de Inhaminga, até ao pôr do Sol, o cadáver do branco Carrelo morto de manhã.
4 de Fevereiro. Uma anunciada Delegação de "Bons Católicos" foi denunciar àPIDE/DGS o facto de a Missão manter a porta aberta durante a noite "para receber os terroristas". O responsável da Missão foi imediatamente chamado à polícia. Na ausência do Superior, compareceu o padre Andreas van Kampen, que repetiu aos pides ser a porta da Missão fechada, todos os dias, por ele próprio, às 5,30 horas da noite, só reabrindo de manhã. Um numeroso grupo de membros da OPVDC partiu, fortemente armado e sem desvendar intenções, para Muanza. A PIDE/DGS prendeu o professor da escola em Dimba, Luanga Manuel Chomba. Mais panfletos lançados de uma avioneta convocaram desta vez "toda a população da comunidade de Moisés Pangache para ser trasladada para Inhaminga". Páraquedistas do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 31- BCP 31, estacionado na Beira, chegaram a Inhaminga. A Beira deslocou-se o Superior da Missão, padre Josep Martens, que, acompanhado do Administrador Apostólico, Monsenhor Francisco Nunes Teixeira, Bispo de Quelimane, e do Vigário-Geral da Diocese, padre José António Souza, apresentou queixas formais ao Governo do Distrito sobre "maus tratos infligidos às populações em Inhaminga, perpetrados pela tropa, pelos brancos e pelos agentes da PIDE/DGS".
7 de Fevereiro. Uma patrulha do Exército transportada em Unimog chega a Cundué, para sul de Inhaminga, já depois de Nhondima e perto do local onde estrada e linha do comboio se cruzam. A força chega ao centro da localidade e os elementos da população ali presentes, junto às lojas, dispersam e afastam-se rapidamente. Alguns desatam acorrer e a tropa faz "fogo de prevenção" ou atira a matar, mesmo que estejam quietos - como aconteceu com o guarda do armazém de madeira na Estação de caminhos-de-ferro, José Thembo. Quando o Exército reparou nele, Thembo encontrava-se sentado à porta da sua palhota, juntamente com a mulher, Farenca, os filhos Carlos, Rita, Rufa e Chana, mais a cunhada Flora, todos paralisados de medo. Rajadas de cartucheira inteira atingem o guarda na cabeça e a cunhada numa perna. A mulher caiu para trás, fulminada. José e Flora, que ainda davam sinais de vida, foram levados para dentro da palhota, a que a tropa chegou fogo. O estalar do colmo pelas chamas, cada vez mais forte, abafou os gritos lancinantes das criaturas a serem queimadas. O Condué fora "pacificado", e o relatório da operação apresentou "bons resultados".
9 de Fevereiro. O dia em que o enviado da fábrica do Dondo toma conhecimento factual do santuário de massacre montado em Muanza - e que constitui a abertura, em destaque, deste capítulo - coincide com novos ataques da FRELIMO em Inhaminga. Os alvos de hoje foram as bombas de água da vila, o acampamento dos pára-quedistas na estação dos caminhos-de-ferro e o palacete de férias do Governador de Sofala. Uma coluna de viaturas da tropa, que regressava do Caia, foi alvejada pelos guerrilheiros, que provocaram um morto e vários feridos. Um comboio de passageiros sofreu o descarrilamento de 12 das suas carruagens, quando passava em Derunde, no local onde os parafusos dos carris haviam sido desapertados. Tropas de Comandos e de Pára-quedistas efectuaram uma operação de limpeza à aldeia de Dimba, obrigando a sua população a abandonar as palhotas que a seguir foram reduzidas a cinza. Os agentes da PIDE/DGS ameaçam, a partir de hoje, individualmente, todos os régulos da região de Inhaminga para que obriguem os nativos a deslocarem-se para os novos aldeamentos. Chico Romão, chefe tribal de Souce, perguntou onde foi construído o "seu aldeamento", uma vez que queria ir pelo seu pé. Luís Nhaguta, agricultor da região muito popular pela quantidade e qualidade da lavoura que produzia, foi igualmente intimado a abandonar as suas machambas, "Os camiões vêm buscar toda a gente nos próximos dias". Romão e Nhaguta recusaram-se a partir, motivo pelo qual deram entrada nos calabouços de Inhaminga, sofrendo agressões diárias. Até chegarem os prometidos camiões, então com destino diferente.
10 de Fevereiro. A FRELIMO ataca a pedreira de Muanza, mata o gerente Jacinto e a sua mulher, e fere gravemente comandante e subcomandante do Destacamento da 2ª. CART no local. No momento, os quatro percorriam de jipe a zona das valas. O responsável pela segurança militar à pedreira foi evacuado "zero-horas" para o Hospital de Lourenço Marques. Milícias brancos da OPVDC e mercenários pretos dos GE encerraram as escolas com paredes e telhado do Corredor de Inhaminga, começando pela de Santa Fé, no paralelo de Pangache. Patrões das serrações e régulos que operam e habitam perto da linha do caminho-de-ferro queixaram-se ao Exército do fogo que constantemente vitima os seus trabalhadores e habitantes, atingidos pelos disparos dos soldados que, "em missão de vigilância e protecção", viajam dentro dos comboios. "Eles vêm à janela da carruagem, apontam aos desgraçados e atiram a matar", reclama João Menano, o madeireiro de Inhaminga, para quem "nem tudo o que é preto é turra, alguns são meus e fazem-me falta".
11 de Fevereiro. No dia seguinte ao ataque em Muanza, o BART 6221 reage e faz avançar uma força no terreno. Regista a Ordem de Serviço da Unidade que a "Operação OUVIDO 9,1" Grupo de Combate da "1ª. CART iniciou batida e perseguição do IN onde ontem pessoal da 2ª. CART destacado na Pedreira de Muanza havia sofrido uma emboscada". Sem resultados.
13 de Fevereiro. Na Missão, após o acto litúrgico da manhã, católicos que trabalham em Inhaminga e habitam a periferia mostram-se apavorados com as atitudes continuadas dos militares portugueses que "sempre fazem mal nas nossas famílias". Queixam-se aos religiosos que "agora cada vez fazem mais entrar na palhota, mostram G-3 ao homem e violam mulher ou filha, mesmo pequena, e isso traz gente muito assustada com medo em Inhaminga". Deram o exemplo mais recente de Catarina Bramo, mulher de Rengo Charengi, violada por dois soldados. Esta mulher dirigiu-se ao hospital onde o médico confirmou os motivos da dor, dos danos, das ofensas e o grau de violência, "Tudo visto pelo senhor Director". Com esta Declaração, assinada pelo dr. Arménio Janeiro, Catarina e Rengo foram apresentar queixa no quartel da tropa. Aqui, o casal foi informado de que "Ninguém se pode queixar da tropa. Vão-se embora!"
14 de Fevereiro. Mais um contingente de 160 GE chegou a Inhaminga, que já não dispõe de espaço para levantar bivaque. O chefe Gorgulho da PIDE/DGS contactou a Missão exigindo que esta tropa seja aí alojada. O Superior recordou ao polícia que tal só seria possível com autorização conjunta do Bispo da Diocese e do Governador do Distrito. O pide retira-se e escolhe a Escola de Santa Fé, encerrada nas vésperas pelos colonos. Os GE, quando se instalaram, intimaram os professores a obrigar "As alunas, só as raparigas, a voltar para a escola porque vai haver aulas."