Maio e a Crise da Civilização Burguesa - Maio de 68
Ora contra isto é preciso deixar consignado como se passaram os factos nesta revolução de Maio francesa:
1º. A revolução começou por uma insurreição espontânea de estudantes como reacção à entrada da polícia na Sorbonne. Os principais animadores dessa insurreição foram os do Movimento 22 de Março, amálgama de anarquistas, trotsquistas e maoistas, cuja personalidade mais marcante é um moço anarquista de 23 anos, Cohn-Bendit.
2º. O PC, através da Humanité, condenou expressamente a acção destes «groupuscules» (nome pejorativo já anteriormente aplicado pela Humanité aos diversos grupos marxistas heterodoxos) e denunciou em termos chauvinistas o «anarchiste allemand CB».
3º. As barricadas dos dias 7 e 10 de Maio foram o acontecimento que abalou toda a opinião francesa e a mobilizou a favor dos estudantes. Fizeram recuar o Governo e abriram aos estudantes as portas da Sorbonne, do Censier, da Faculdade de Nanterre e, pouco depois, das outras principais universidades francesas.
4º. Com a ocupação da Sorbonne e outros centros universitários, declarados pelos estudantes «universidades autónomas», estes estabelecimentos tornaram-se focos revolucionários. Assembleias abertas a toda agente, frequentadas também por operários, que tinham na ordem do dia a preparação imediata da «revolução». Com elas se iniciou imediatamente a revolução cultural.
5º. Foi o sobressalto provocado pelas barricadas que tornou possível a grande manifestação de estudantes e trabalhadores do dia 13 de Maio, assim como a greve geral desse dia (aliás, muito parcial). Juntos, meio milhão de operários, estudantes e outros grupos sociais vieram para a rua.
6º. Os estudantes procuraram imediatamente o contacto com os operários, mas o PC e os chefes sindicalistas impediram a entrada nas fábricas dos representantes dos estudantes.
7º. Apesar disso, o exemplo da ocupação da Sorbonne começou a ser seguido por operários com a ocupação das fábricas, e alastrou, independentemente das ordens dos chefes sindicalistas, que se recusaram a lançar a ordem de greve geral.
8º. No dia 24 de Maio, os sindicalistas e o PC fizeram tudo quanto lhes era possível para evitar a participação de operários na manifestação organizada pelos estudantes. Para isso, organizaram à última hora uma manifestação separada e conduziram-na em sentido oposto àquele onde os estudantes se concentravam.
9º. Entretanto, o PC engolfava-se em negociações com a Federação da Esquerda para a eventualidade da formação de um novo governo. Embora declarando que o Parlamento não reflectia a realidade política da
França, aceitou o resultado do voto que deu a confiança ao Governo. Um projecto prevendo o abandono do Parlamento pela oposição não foi levado avante. O PC não pôs em questão a validade do Parlamento.
10º. A CGT, arrastando outras centrais sindicais, entrou em negociações com o governo para satisfazer «nos revendications» no mesmo momento em que os comités d' action , criados fora dos sindicatos, apelavam para formação de um «pouvoir ouvrier que se substituiria autoridades actuais. A notar que a direcção da CGT é de maioria comunista e que Georges Séguy é membro do bureau político do Partido.
Estes são os factos até hoje. Acrescentemos que, para confundir e enfraquecer os comités d'action inspirados pelos estudantes e que abrangem o pessoal não sindicalizado, o PC organiza os «comités d'action pour un gouvernement populaire et démocratique».
(…)
1 de Junho de 1968 – (…) Ele (De Gaulle) compreendeu duas coisas: primeira, que na situação anárquica em que se vivia tinha de afirmar a autoridade do «Estado»; outra, que era preciso substituir a batalha da rua pela batalha eleitoral. Nos últimos dias, sobretudo no dia 29, havia a impressão de que o Governo se tinha sumido e o Estado estava decapitado. Era este o argumento do Mitterrand: «Já não há Estado.» Ele, o Mendes-France e o Waldeck-Rochet falavam como chefes virtuais numa casa onde não havia rei nem roque. Mas o De Gaulle aparece, depois de um suspense teatral, e dá um berro: «o Estado sou eu!» E isto foi o bastante para se sumirem por um alçapão os que disputavam a herança do morto, que afinal estava vivo.
Todos os que têm o «sens de l'État» ficaram, no fundo, aliviados, a começar pelo PC, interessado em herdar um Estado íntegro e em bom funcionamento. O Le Monde de ontem (data de hoje), num artigo do director (Sirius), faz um curioso apelo ao «sens de l'État», já provado, do PC, para que ele ponha termo às «surenchères». Apelo perfeitamente escusado, como o mostra a resposta da Humanité desta manhã. Sem dúvida, diz o René Andrieu no editorial, que o Beuve de Meury tem razão em crer na experiência e no «sens de 1'État» dos Comunistas; eles possuem isto mais que o Le Monde . Vale a pena copiar o texto: «Il est vrai qu'ils (les communistes) n'ont pas craint, même quand ils étaient à contre-courant dans certains milieux, de s'élever contre les initiatives prises par des irresponsables, qui n'auraient pas manqué de faire le jeu du pouvoir gaulliste. On peut seulement regretter qu'en ces circonstances Le Monde n' ait pas fait preuve du même courage, ni, pour reprendre son expression, du même sens de 1'État.» Com este remoque - que se refere à importância atribuída por Le Monde às manifestações estudantis – fecha o artigo do redactor-chefe da Humanité. Como vai longe o tempo em que o Marx reclamava (como os anarquistas) abolição do Estado! E não se diga que o Marx falava do Estado burguês; porque o Estado a que se referem nesta polémica tanto o Le Monde como o L 'Humanité é o mesmo e um só: o actual Estado francês criado pela burguesia, de que os comunistas têm «un sens et une expérience certaines», visto que o Maurice Thorez foi um dos seus restauradores ao lado do De Gaulle, em1945. O Estado da bandeira «tricolor», que ontem o Waldeck-Rochet proclamou bandeira da classe operária, porque a luta pelos interesses dessa classe é ao mesmo tempo a luta «pour l'intérêt de notre patrie». Por isso o PC pode dizer: «Nous continuons la France.» A frase, salvo erro, é do De Gaulle: foi repetida pelo secretário do PC, ontem, num comício do Cinema Sécrétan.
É isso. Trata-se de substituir o Governo, conservando as estruturas centralistas e burocráticas da França actual. Isto está tão longe do Marx como a Inquisição do Cristo.
por António José Saraiva
(in Maio e a Crise da Civilização Burguesa. António José Saraiva. Ed. Gradiva. 2005)