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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

MALAS-ARTES, LETRAS BRUXAS

12.04.24 | Manuel

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José Cardoso Pires

Foi no Outono à noite, tinha eu vinte anos. As árvores da Avenida da Liberdade desfolhavam-se na ventania e logo ali no Cinema São Jorge, no Tivoli e no Politeama, grupos de jovens lançaram sobre a plateia uma chuva de outras folhas a outros ventos. Mal as luzes do intervalo quebraram a escuridão das salas, centenas de cidadãos estremunhados viram surgir no espaço bandos de mensagens voadoras que adejaram, até lhes caírem aos pés, com brados de revolta contra a ditadura do Dinossauro Salazar.

Foi um golpe de surpresa e de medo. Os moscardos da Polícia Política desataram a zumbir por todos os cantos e em menos de nada davam entrada no purgatório da PIDE da Rua António Maria Cardoso alguns dos panfletários em causa, entre os quais este aqui que se subscreve.

Mas eis que, dezenas de anos sobre isto, revejo na televisão o genial “Sentimento”, de Visconti, a abrir com uma sala de ópera invadida por nuvens de panfletos revolucionários sobre um fundo da “La Traviata”. E diante do ecrã recordo a noite salazarenta dos cinemas de Lisboa em alvoroço.

Sei que não foi na história vivida que Visconti recolheu esse apontamento mas na ficção dum escritor oitocentista, Camillo Boito, por isso digo para mim que, afinal, naquela aventura da minha juventude, tínhamos repetido não a experiência real doutros rebeldes, mas a imaginação duma escrita nunca lida por Nós.

Diz-se que a Natureza imita a Arte. Ou que a realidade copia o imaginado, o que vem a dar no mesmo. Imagina-se, confabula-se, e, sem que alguém se aperceba, está-se a antecipar o real. Mais, eu penso que a melhor narrativa de ficção é feita de hipóteses do homem e não de confirmações, e que, quanto mais inventiva, mais contribui para concretizar o mundo.

Aconteceu-me isso Há dois anos, quando, de regresso dos estados Unidos, peguei com a mão de Deus num apóstolo do Diabo que tinha visto a orar na praça pública em Filadélfia e fui pô-lo à entrada do World Trade Center, de Nova Iorque. Refi-lo, inventei-o. Chamei-lhe, por conta própria, Golden Menphisto e mandei-o declamar excomunhões fundamentalistas contra o imperialismo ocidental que o pobre-diabo nunca sonhara em todas as suas cruzadas. Depois passei-o à prosa em modelo de crónica livre, pus-lhe à cabeça o título de "O Diabo em Nova Iorque".

Meses depois, no mesmo PÚBLICO onde o tinha exposto a ameaçar o World Trade Center com um arsenal de profecias macabras, deparo com a notícia a todas as colunas do célebre atentado ao mesmo World Trade Center pelos terroristas do fundamentalismo islâmico. Como toda a gente, quase ceguei de indignação, mas lá muito no fundo, por entre os destroços, ainda me pareceu vislumbrar o Diabo que eu tinha trazido de Filadélfia para minha recreação.

Abordo estes acasos de quem escreve e, quase sem querer, vou mais longe. Londres, 1968. Num quarto de South Kensington invento uma morte excelente para o Salazar que então vivia em absoluto e prometia. Publiquei-a, está em livro ilustrado por João Abel Manta. É a fábula dum Dinossauro patriarcal que cai do trono abaixo e acaba sufocado pelas mentiras com que montou as suas máscaras.

A outra, a morte real do Ditador, veio depois e, se formos a ver bem, coincide com a da fábula por artes de bruxaria. Começa com o precalço doméstico da queda duma cadeira e acaba em mentira final com o Excelentíssimo, já à beira de defunto e sem coroa nem poder, a dar uma falsa entrevista, rodeado de ministros a fingir.

Por estas e por outras é que eu penso que a melhor narrativa de ficção é feita de hipóteses do homem e não e confirmações, e que, quanto mais inventiva, mais contribui para concretizar o mundo.

Por isso, recordo Júlio Verne como inventor de Cousteau e dos astronautas do nosso deslumbramento; leio o Drácula como uma personagem premonitória dos canibais que de tempos a tempos surgem nas páginas de crime da civilização contemporânea; leio e escrevo à procura de felicidade e também o mundo me aparece às vezes em momentos felizes para grande espanto meu.

E os escritores? Não se inventarão a eles mesmos para escrever?

(Publicado em “Público Magazine”, 25/06/1995)

 

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Entrada da tropa na sede da PIDE na António Maria Cardoso após rendição dos agentes aí acoitados (Foto "P")

Imagem de destaque: A chegada ao hosdpital de um dos feridos pelos disparos dos pides na António Maria Cardoso (Foto in "DL")