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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Noémia de Sousa

19.09.22 | Manuel

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SÚPLICA

Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a tua lírica de xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota - humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba quSÚPLICAe nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
- mas não nos tirem a música!
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!
E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
- Por isso pedimos,
de joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!

*

Poesia, Não venhas!

Porque vieste hoje,
Precisamente hoje, que não posso te receber?
Hoje,
Em que tudo tem uma cor
De pesadelo e em que até minha irmã a lua
Não veio, com a sua carícia fraterna, dar-me calma?
Oh Poesia,
Não, não venhas hoje!
Não vês que a minha alma
Não te pode compreender?
Que está fechada,
Cercada, fatigada,
E nada mais quer senão chorar?
Hoje, eu só saberia cantar
A minha própria dor…
Ignoraria
Tudo o que, Poesia,
Me viesses segredar…
E a minha dor,
Que é minha dor egoísta e vazia,
Comparada aos sofrimentos seculares
De irmãos aos milhares?
Bem sei que as minhas frouxas lágrimas
Nem o mais humilde poema valeriam…
E se tu sabes que é assim, Oh! Poesia!
Será melhor que fiques lá onde estás,
E não venhas hoje, não!
(Moçambique, 23/04/1949)

* Poetisa moçambicana (20 de Setembro de 1926 - 4 de Dezembro de 2002)

Noémia de Sousa segundo Mia Couto

“Conhecia a poesia antes da pessoa. Construí para mim próprio mitologia, a ideia de uma mulher fisicamente pujante, voz sólida como a esperança de que era estandarte, olhar firme como a causa das lutas que abraçava. Noémia era frágil e delicada, a voz trêmula, o olhar doce e apaixonado de criança. Ela era o poema e a poesia. A bandeira que se erguia nos seus textos éramos nós que a sustentávamos. E a certeza do que proclamava não vinha senão do murmúrio, esse mesmo sussurro que são a voz do vento, do mar e do amor.”