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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O 1º de Dezembro e a restauração da independência

01.12.23 | Manuel

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Todos os anos comemora-se o 1º de Dezembro como o Dia da Restauração da Independência do país perante o reino de Castela (Espanha), monárquicos (parece que ainda existem), alguma direita e extrema-direita deleitam-se com a data, mas para o povo que trabalha e produz pouco significado terá, a não ser o gozo de mais um dia de feriado, que o governo PSD/PP de Passos Coelho tentou retirar a bem dos lucros do capital. Será Portugal um país independente e a restauração da dita independência terá sido feita a bem do povo?

Um historiador espanhol (Rafael Valladares), de passagem por Portugal para apresentação do seu livro, “A independência de Portugal - Guerra e Restauração 1640-1680”, soube colocar o dedo na ferida: a “restauração foi uma revolta das elites que não queriam perder privilégios”. O povo apoiou porque viu que teria mais vantagens colocar-se ao lado da elite doméstica do que apoiar a dinastia dos Filipes que tinha sobrecarregado o país com impostos. Não foi por patriotismo, assim como o partido da nobreza e da Igreja portuguesas foi o dos privilégios pessoais e de casta, porque a tradição é a da nobreza tomar partido por Castela quando vê vantagens nisso; aconteceu em 1383 e repetiu-se dois séculos depois, em 1580, com a perda de independência, na medida em que, como é bem visto pelo historiador espanhol, “a maior parte das elites portuguesas eram a favor (da perda da independência) porque achavam que a monarquia espanhola podia dar-lhes protecção, prestígio, rendas e oportunidades políticas para ocupar cargos de importância em todo o império espanhol”. A última coisa que tiveram em pensamento foi o povo português.

O discurso nacionalista, da “luta pela independência nacional”, foi um discurso que surge apenas no século XIX, com o domínio do capitalismo industrial que para poder impor-se tinha que assentar em estados nacionais fortes. As correntes românticas e de exaltação da pátria e dos antepassados e grandezas passadas vieram depois, a nível cultural, para justificar uma situação que interessava principalmente em termos económicos. Os vinte e oito anos que durou a guerra da restauração não foram um período pacífico quanto ao entendimento entre as três principais classes – a nobreza, o clero e o povo.

Um outro historiador, este português, Fernando Dores Costa, mostra bem na sua obra “A Guerra da Restauração 1641-1680”, que a luta pela restauração da independência foi feita no interesse da fidalguia portuguesa e da Igreja, com a participação forçada do povo. No século XVII, os portugueses designavam os espanhóis por “castelhanos” e o “rei de Castela” era visto como um monarca nacional e não espanhol atendendo a que era senhor de vários reinos e domínios na Europa e no Novo Mundo; Filipe IV pertencia à casa dos Habsburgos da Áustria e era herdeiro da coroa portuguesa pela via dos seus ancestrais, pai e avô. Foi a nobreza nacional e o clero, que viviam das rendas da terra e das prebendas vitalícias (como agora acontece com a elite contemporânea) dadas pelo Estado, que iniciaram a revolta.

A guerra da dita “restauração da independência” demorou vinte e oito anos, com enormes e pesados sacrifícios para o povo, que se queixava constantemente, nas diversas Cortes que se reuniram até ao fim do século XVII, de que era o único “estado” que pagava impostos e sacrificava os seus filhos com prejuízo das famílias e dos trabalhos da agricultura; enquanto que a nobreza, incompetente e corrupta, recebia os elevados soldos, roubava nos abastecimentos, nas soldadas, na alimentação e nos fardamentos dos recrutas que desertavam mas continuavam inventariados no exército; e o clero que se eximia a pagar o esforço de guerra (por exemplo, o clero de Braga, no período de 1647 a 1653, tinha pago apenas 17 759 000 réis dos 61 340 920 a que se tinha comprometido) e que recusava o recrutamento (bem como o pagamento de impostos) invocando a “autorização do Papa”, situação reforçada pelo não reconhecimento de D. João IV pelo Papa que alinhava com a posição de Filipe IV.

Na reunião dos três estados (povo, nobreza e clero) em 1653-54, o povo manifestou a sua revolta contra a destruição da sua administração local pela ingerência abusiva dos nobres, dos governadores das armas que procediam a prisões arbitrárias dos pais e das mães dos soldados em fuga, pela prática de requisições efectuadas pelos ministros da guerra, que eram vistas como uma dupla tributação, dinheiros que eram gastos em despesas supérfluas, e exigindo que os governadores das armas recebessem apenas uma remuneração mensal de 50 mil réis, o que foi considerado uma humilhação pelos nobres, e o fim da criação de novos cargos administrativos – os governadores de comarca, por exemplo – que eram vistos como uma perda da influência social dos dirigentes populares. O que motivava as diversas classes sociais eram interesses próprios de classe e muito pouco o “amor à pátria”.

Naquilo que se poderia considerar com algum esforço o exército campeava a incompetência, a desorganização e a corrupção. Os cargos de chefia eram atribuídos consoante o grau dos títulos ou das propriedades ostentados, geralmente eram os nobres que ocupavam os cargos mais importantes e que, para além de roubarem o erário público, abandonavam a frente de batalha para se refugiar no bem-bom da corte de Lisboa, deixando as tropas a cargo de oficiais subalternos, igualmente incompetentes e corruptos, que eram escolhidos na base da confiança pessoal. Os recrutas eram camponeses apanhados à força em levas que, à primeira oportunidade, fugiam, chegando ao destino do campo da refrega no Alentejo uma pequena parte do contingente inicial, não lhes era dado baixa para se continuar a contabilizar os fardamentos, o soldo e a alimentação. Quando o conde de Schomberg chegou a Portugal para reorganizar as tropas e preparar a defesa do país ficou completamente banzado. Foi mal recebido porque era estrangeiro e vinha chefiar o exército, e porque não hesitou em apontar os responsáveis pelo estado calamitoso da tropa; quando a cidade de Évora se entregou quase sem resistência às tropas castelhanas, em 1663, levou ao desabafo de Schomberg ao seu amigo inglês Fanshaw, manifestando a sua máxima indignação pela capitulação suspeita: a cobardia com que agira o comandante português estava para lá de tudo o que tinha visto na sua longa vida militar.

Os portugueses acabam por ganhar a disputa porque a situação das forças castelhanas não era melhor, dificuldade em recrutar tropas e obrigá-las a combater, a inépcia e corrupção dos chefes militares castelhanos, e a revolta da Catalunha que ocorre na mesma altura, desviando o esforço de guerra de Filipe IV; Portugal torna-se independente um pouco à custa da Catalunha. Foi mais por desmérito do adversário do que por mérito próprio. O discurso nacionalista da burguesia portuguesa nos séculos XIX e XX, e do Estado Novo, cai por terra nos seus pressupostos quando confrontado com os factos. A fundação da “nacionalidade” e a “restauração” foram incidentes históricos que beneficiaram fundamentalmente as elites, para o povo sobrou o pagamento das despesas – como agora acontece.

Neste momento, estando Portugal dentro da União Europeia e com o Euro como moeda para as suas trocas comerciais e pagamentos, com a maior parte da banca nas mãos dos espanhóis e, por extensão, boa parte da sua economia, Portugal e o povo português não são verdadeiramente independentes, é que as elites e o povo são coisas distintas.

Bibliografia consultada: “A Guerra da Restauração 1641-1680”, Fernando Dores Costa. Livros Horizonte, 2004.