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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O fuzilado português na Grande Guerra – um caso único depois da abolição da pena de morte

17.09.24 | Manuel

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Aniceto Afonso

Neste dia de comemoração dos 150 anos da abolição da pena de morte, vem a propósito falar de novo no único fuzilado português da Grande Guerra, a 16 de Setembro de 1917.

A primeira vez que estudei este assunto foi em 1981, tendo publicado, juntamento com Marília Guerreiro, na Revista Clio do Centro de História da Faculdade de Letras (Vol. 3, 1981, pp. 193-199), um estudo intitulado “Um soldado português fuzilado na Flandres”. Referi esse assunto no blogue Fio da História no dia 1 de Julho de 2011, quando se comemoravam 144 anos da abolição da pena de morte. Ver aqui:

Uma das últimas vezes que referi o assunto em público foi na apresentação da obra “Portugal e a Grande Guerra”, edição da Editora Verso da História, em Dezembro de 2013, no Forte do Bom Sucesso, sede da Liga dos Combatentes. Disse aí as seguintes palavras:

“Só focaria mais um assunto, que recentemente se tornou de novo relevante. Trata-se do único soldado português fuzilado na frente de combate, em França – o soldado João Augusto Ferreira de Almeida. O estudo sobre este caso está feito. A execução ocorreu em 16 de Setembro de 1917, numa altura em que entravam em linha as primeiras unidades portuguesas. Há um pouco a ideia, de certa forma confirmada por várias opiniões, de que este fuzilamento ocorreu por pressão do comando inglês.

Por se tratar de um infeliz episódio ficou esquecido nos arquivos e na memória. Pelas circunstâncias que vos direi, é altura de retomar o caso.

Em 2006, portanto bem recentemente, o parlamento inglês aprovou uma lei de perdão e reabilitação de todos os militares fuzilados na primeira guerra mundial. Foram abrangidos 306 executados, entre britânicos e da Commonwealth (25 canadianos, 22 irlandeses e 5 neozelandeses).

Embora com alguma polémica, visto na época se encontrarem tropas britânicas no Iraque e no Afeganistão (razão que alguns deputados, principalmente Conservadores, invocaram para argumentarem que tal resolução seria capaz de influenciar a disciplina das tropas expedicionárias actuais), a verdade é que todos os militares que serviram em unidades inglesas foram perdoados.

Mas há um, um único, que tendo servido numa unidade britânica (o 1º Exército, do qual dependia o Corpo Expedicionário Português), não foi reabilitado e o estigma e a desonra permanecem ligadas ao seu nome.

Seria relevante que o Exército, ou a mesmo a Liga dos Combatentes, assumisse como sua esta delicada tarefa – conseguir que o soldado João Augusto Ferreira de Almeida seja perdoado e reabilitado, como o foram todos os seus camaradas britânicos, que serviram na mesma unidade.

Quero também recordar que em França já existe uma proposta de lei do Senado para o perdão e reabilitação dos seus “fuzilados como exemplo”, como os franceses gostam de dizer. Data de 2008 e visa 675 militares, em que estão 40 magrebinos e 15 africanos.

Os familiares deste infeliz soldado português, em especial um seu sobrinho-neto que há algum tempo me procurou no sentido de saber notícias do processo do seu tio-avô, poderão finalmente não só saber o que realmente se passou com o seu familiar (o que nunca lhes foi comunicado) como assistir ao seu perdão e à sua reabilitação”.

Já em 2010, com um grupo de amigos historiadores, tentámos apresentar no Parlamento um dossiê sobre este caso, o que não veio a concretizar-se. Nessa altura entre os vários documentos elaborados, fazíamos este resumo:

“Os factos são estes:

Primeiro - Portugal enviou para a campanha europeia da Grande Guerra de 1914-1918 um Corpo Expedicionário com mais de 50.000 homens.

Segundo - De acordo com a lei vigente na época (o que exigiu uma alteração da Constituição de 1911 específica para esse fim, com a reintrodução da pena de morte) um único soldado português foi fuzilado depois de ouvir sentença dum Tribunal de Guerra organizado na frente de combate – o soldado João Augusto Ferreira de Almeida.

Terceiro - O Corpo Português esteve sempre integrado numa grande unidade inglesa – o 1º Exército da Força Expedicionária Britânica e estava-o portanto no dia 16 de Setembro de 1917, dia em que o soldado português foi fuzilado.

Quarto – Em 14 de Setembro de 2000, o Parlamento da Nova Zelândia tomou a iniciativa de publicar uma lei de perdão dos seus cinco soldados fuzilados no mesmo conflito;

Quinto – Em 11 de Dezembro de 2001, o Governo do Canadá, pela voz do seu ministro dos Assuntos dos Veteranos, anunciou o perdão dos seus 23 militares fuzilados ainda no mesmo conflito;

Sexto - Em 8 de Novembro de 2006, o Parlamento do Reino Unido aprovou uma lei de perdão a todos os seus 306 fuzilados na Grande Guerra, o que incluiu 22 irlandeses, 25 canadianos e cinco neo-zelandeses (estes dois casos já abrangidos anteriormente pelas leis dos seus países);

Sétimo - Existe uma proposta do Senado francês de 2008 para o perdão dos 540 fuzilados franceses na Grande Guerra.

Nestas circunstâncias, pretende-se que Portugal publique uma lei de perdão relativa ao soldado português fuzilado na Flandres em 1917.

A apresentação formal deste processo tem o apoio da família do soldado Ferreira de Almeida, representada pelo seu sobrinho-neto Alberto Manuel Gomes Ferreira de Almeida”.

Na sessão de lançamento da obra “Portugal e a Grande Guerra” no Forte do Bom Sucesso, o Presidente da Liga dos Combatentes assumiu publicamente a tarefa de se interessar por este caso e tomar em suas mãos a apresentação de uma proposta ao Ministério da Defesa Nacional, a fim de ser encaminhada para a Assembleia da República. Sabemos que se tem interessado pelo assunto e tem feito esforços para que ele seja considerado por quem de direito, mas a verdade é que tudo continua na mesma.

Hoje, que se comemoram 150 anos da abolição da pena de morte, bem poderíamos esperar que o único português condenado e executado depois disso, fosse, como merece, perdoado e reabilitado.

Imagem: Aspecto do fuzilamento de um soldado francês em Verdun

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