O Massacre de Gwangju e a luta inglória por democracia na Coreia do Sul
Estevam Silva
Em 27 de maio de 1980, o governo da Coreia do Sul enviava tropas para reprimir os manifestantes que se rebelaram contra a ditadura de Chun Doo-Hwan. A repressão evoluiu para uma matança generalizada – o infame Massacre de Gwangju – que deixou um número de mortos estimado em até 2.300 pessoas.
A imagem da Coreia do Sul como uma democracia estável, moderna e bem consolidada tornou-se lugar comum nas representações difundidas pela mídia ocidental. A apresentação da nação asiática como contraponto à sempre vilificada Coreia do Norte serve de lastro às narrativas anticomunistas e reforça a propaganda ideológica em prol das benesses supostamente inerentes às “democracias” liberais burguesas. A Coreia do Sul seria o refúgio das “liberdades individuais”, dos “direitos civis” e do “desenvolvimento”, em contraponto ao “totalitarismo” e “atraso” da Coreia do Norte.
Não obstante, a trajetória sul-coreana registrada desde a Segunda Guerra Mundial sempre foi permeada por ditaduras, fraudes eleitorais, autoritarismo e forte repressão contra sua própria população — submetida a uma série de massacres perpetrados em prol dos interesses da burguesia sul-coreana e do capital internacional. Após a divisão da península da Coreia nas áreas de influência soviética e norte-americana, estabeleceu-se na Coreia do Sul um governo militar presidido pelo Exército dos Estados Unidos, que impôs uma política brutal de repressão contra organizações sindicais e progressistas e massacrou os trabalhadores que se rebelaram na cidade de Yeongcheon.
Posteriormente, os Estados Unidos “terceirizaram” a gestão do governo sul-coreano para um regime-fantoche administrado por Syngman Rhee, um anticomunista fervoroso que vivia nos Estados Unidos e era amigo pessoal do presidente Theodore Roosevelt. Eleito indiretamente para a Presidência da Coreia do Sul, Syngman Rhee ficaria à frente do governo por 12 anos, consolidando um regime ditatorial subserviente à política externa norte-americana. O regime de Rhee seria responsável por perpetrar dezenas de massacres, ceifando a vida de pelo menos 100 mil sul-coreanos. Deposto em 1960 após a eclosão da Revolução de Abril, Syngman Rhee foi sucedido interinamente por Yun Bo-Seon, que ensaiou uma transição para um governo democrático.
Não obstante, já no ano seguinte, um golpe instalou Park Chung-Hee na Presidência e a Coreia do Sul mergulhou novamente em uma ditadura militar. O governo de Park Chung-Hee foi igualmente marcado pela perseguição brutal dos opositores, pela restrição aos direitos civis da população sul-coreana e pela severa repressão às mobilizações estudantis e operárias. Não obstante, o crescimento econômico acelerado do país durante o período chamado de “Milagre do Rio Han” e a colaboração inconteste com o governo dos Estados Unidos (expressa na decisão de enviar tropas para apoiar os norte-americanos na Guerra do Vietnã) garantiram o forte apoio da elite sul-coreana e das potências capitalistas ao seu governo.
Após 18 anos à frente do regime, Park Chung-Hee foi assassinado em outubro de 1979, em um atentado perpetrado pelo general Kim Jae-Gyu. A morte súbita do ditador inaugurou um interregno de instabilidade política no país e despertou uma onda de manifestações organizadas por estudantes, trabalhadores e os movimentos sociais que exigiam a democratização. Tais expectativas, entretanto, foram frustradas em questão de meses, após o general Chun Doo-Hwan perpetrar outro golpe militar, derrubando o presidente interino Choi Kyu-Hah e assumindo o comando do país.
As principais demandas eram por direitos sociais e liberdade
Indignados com a instauração de mais uma ditadura, estudantes e sindicatos começaram a se mobilizar, organizando protestos massivos em favor de reformas. Os manifestantes exigiam o fim da lei marcial, eleições livres, instituição do salário mínimo e a ampliação dos serviços públicos e dos direitos civis. As maiores manifestações ocorreram na capital, Seul, onde registraram-se atos reunindo mais de 100 mil pessoas. A mobilização popular, entretanto, espalhou-se por toda a Coreia do Sul, ressoando de forma particularmente forte entre os estudantes de Gwangju, então capital da província de Jeolla do Sul.
A província era conhecida por seu histórico de resistência às ocupações estrangeiras e aos governos autoritários do pós-Segunda Guerra. Os moradores de Jeolla do Sul, por sua vez, ressentiam-se com o fato do governo sul-coreano negligenciar a região, preterida em relação aos volumosos investimentos e obras públicas destinados à província de Gyeongsang. Em resposta às crescentes manifestações, o ditador Chun Doo-Hwan recrudesceu ainda mais as medidas repressivas, ampliando a lei marcial, restringindo a liberdade de imprensa e ordenando o fechamento das universidades. Tropas das Forças Armadas da Coreia do Sul foram despachadas para todas as regiões do país para fazer cumprir a lei marcial.
Os militares intervieram na Conferência Nacional de Dirigentes Estudantis, órgão de concertação do movimento estudantil que reunia representantes de 55 universidades, e ordenaram a prisão das lideranças — incluindo Kim Dae-Jung, ativista ligado ao Partido Democrático Coreano, acusado de incitar as manifestações antigovernamentais. A prisão de Kim Dae-Jung inflamou os ânimos estudantes de Gwangju, levando a uma nova onda de protestos ainda mais contundentes.
Em 18 de maio de 1980, os militares sul-coreanos reprimiram com grande violência um protesto organizado pelos estudantes da Universidade Nacional de Chonnam, causando dezenas de mortes. Outras centenas de estudantes foram detidos. A violência policial chocou a população civil, que aderiu em massa às manifestações. A revolta popular atingiu seu clímax após uma nova confrontação ocorrida durante um protesto realizado em frente prédio da Administração Provincial. O Exército abriu fogo contra os manifestantes, matando um grande número de civis. Em resposta, uma multidão enfurecida invadiu os arsenais e as delegacias de polícia, confiscando as armas e subjugando as forças de segurança locais.
Milhares foram presos e torturados
Em seguida, os cidadãos formaram milícias armadas e tomaram a cidade de Gwangju. Nos dias seguintes, os rebeldes formaram um Comitê de Cidadãos para gerir a cidade e tentaram estabelecer uma negociação com o Exército, propondo o desarmamento das milícias em troca da libertação dos presos políticos e concessão de anistia aos revoltosos. Paralelamente, o exemplo dos moradores de Gwangju começava a inspirar novas revoltas e manifestações eclodiram em cidades como Hwasun, Naju, Haenam, Mokpo, Yeongam, Gangjin e Muan.
Vislumbrando a possibilidade de perder o controle sobre o país, o ditador Chun Doo-Hwan proibiu o Exército de continuar as negociações e ordenou o aniquilamento imediato da revolta. Cinco divisões fortemente armadas do Exército sul-coreano cercaram Gwangju em 26 de maio, bloqueando todos os acessos à cidade.
Na madrugada do dia seguinte, os militares iniciaram a retomada de Gwangju, estabelecendo enfrentamento aberto contra as milícias e mergulhando a cidade em um banho de sangue. Os civis foram derrotados em poucas horas. O governo sul-coreano divulgou no balanço da operação a informação oficial de que 144 manifestantes teriam sido mortos durante o levante, mas pesquisas realizadas com base nos dados cartoriais de Gwangju evidenciaram que até 2.300 pessoas podem ter sido assassinadas pelo exército.
Os corpos se amontoavam pela cidade
Após debelar a revolta, o governo sul-coreano prendeu 1.394 pessoas e acusou 427 revoltosos em processos formais. Desses, sete receberam a sentença de morte e outros 12 foram condenados à prisão perpétua. Kim Dae-Jung foi sentenciado à pena de morte, mas a pressão internacional levou o governo sul-coreano a comutar sua pena por 20 anos de prisão. O governo sul-coreano usou o levante como justificativa para ampliar as restrições aos direitos civis, mas o massacre também abalou significativamente a imagem pública de Chun Doo-Hwan e erodiu os discursos sobre a pretensa legitimidade de seu governo, pavimentando o caminho para o ressurgimento dos movimentos pró-redemocratização e as Lutas de Junho de 1987, que ensejaram a transição para o governo civil.
Chun Doo-Hwan foi julgado em 1996 e chegou a ser condenado à pena de morte por sua atuação no Massacre de Gwangju, mas recebeu indulto do governo e morreu sem nunca ter respondido por seus crimes. Em Gwangju, ergueu-se um memorial homenageando as vítimas do massacre, mas, de resto, a história brutal dos governos militares sul-coreanos recebe pouca atenção da mídia ocidental. O enfoque costuma ser direcionado às celebridades do K-Pop, à parafernália tecnológica e aos letreiros luminosos de Seul, enquanto abundam as notícias e boatos vilanizando a Coreia do Norte, onde em 76 anos de governo socialista um massacre de tal porte jamais ocorreu.
Chun Doo Hwan recebe Ronald Reagan em Seul