O “Nelson Mandela palestiniano”
Quando se fala num potencial sucessor de Yasser Arafat o nome mais citado é, de facto, o de Marwan Barghouti. A sua condenação perpétua não retira a esperança aos que gostariam de o ver como futuro líder. Muitos evocam o exemplo de Nelson Mandela, libertado pelo regime de apartheid de uma reclusão vitalícia para se tornar no primeiro presidente de uma África do Sul multirracial. É muitos observaram também que, mesmo atrás das grades, Barghouti negociou um cessar-fogo com os islamistas e apoiou o plano de Sharon para a retirada de Gaza.
Barghouti foi condenado por três acusações de assassínio – as únicas que um tribunal de Telavive considerou válidas – das 37 que lhe foram imputadas. Para um grande sector da opinião judaica, ele mereceu o castigo, mas o responsável da Fatah na Cisjordânia nunca reconheceu a autoridade dos três juízes que ele acusava de estarem "ao serviço da ocupação". A sentença diz respeito ao seu alegado envolvimento no assassínio de três judeus israelitas e de um monge grego em três ataques separados, em Janeiro, Março e Junho de 2002. Apesar da condenação, os magistrados concluíram que não podia ser atribuída ao arguido responsabilidade directa na maior parte dos atentados incluídos no seu processo -porque, reconheceram, ele não controlava todos os operacionais envolvidos e também porque ele se opunha a ataques "dentro da linha verde" [Israel].
Apesar de preso ou por estar preso, a influência política de Barghouti não foi abalada. Pelo contrário, a sua popularidade chegou a ultrapassar a de Arafat. Regressado em 1994 à Cisjordânia, depois de sete anos de exílio forçado, Barghouti defendeu os Acordos de Oslo assinados no ano anterior. Para o "shebab" (jovem) activista da primeira Intifada, doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de
Bir Zeit e professor da disciplina de Democracia e Sociedade Civil na Universidade de AI-Qods, Oslo representava "a mais importante conquista palestiniana" desde que a Fatah decidiu, em 1965, pegar em armas para reconquistar a pátria perdida em 1948.
Em 1996, Barghouti foi eleito deputado do Conselho Legislativo Palestiniano. Manteve o diálogo com todos os sectores da sociedade política israelita - esquerda, centro e direita -, convencido de que o seu principal aliado na luta pela liberdade eram os judeus de Israel. Queria persuadi-los de que também os palestinianos têm direito a um Estado.
A desilusão cresceu à medida que o processo de paz se afundava. Uma das acções israelitas que mais ressentimento causou a Barghouti foi o assassínio de Raed Karmi, operacional da Fatah na Cisjordânia.
Esta execução, por ordem de Sharon, foi considerada uma provocação imperdoável, tanto mais que foi levada a cabo após um raro apelo televisivo de Arafat (influenciado por Barghouti) para que todas as facções palestinianas respeitassem uma trégua. Barghouti sentiu-se traído porque tanto os governos trabalhistas como os do Likud faziam equivaler Oslo a uma nova forma de "despojamento" dos palestinianos. Em Junho de 2000, quando o entrevistei no seu gabinete em Ramallah, na Cisjordânia, no intervalo de uma das suas muitas audiências com embaixadores estrangeiros, dizia:
Creio que vai haver muitos e grandes confrontos com os israelitas. Se não houver progressos reais, creio que vamos ver um novo modelo de acções militares e de ataques. Até agora os israelitas têm estado a brincar. Para eles, a paz é um trabalho em 'part-time" e não uma missão a tempo inteiro. Estão a perder a oportunidade. E a fazer perder a oportunidade aos palestinianos. Eles não vão encontrar uma liderança corajosa como a do senhor Arafat para resolver estas complicadas questões. Os israelitas querem paz sem devolver território. Isso não resulta. Têm de pagar o preço. Porque nós já pagámos o preço. Reconhecemos Israel nas suas fronteiras de 1948, ou seja, em 77 por cento da Palestina histórica. O que sobra é 23 por cento da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém. Antes de, em 1947; a ONU prever a partição da Palestina em dois Estados, os palestinianos controlavam 94 por cento do território da Palestina. Apesar disso, a ONU decidiu dividir a Palestina: 56 por cento para os judeus e 42 por cento para os palestinianos, e os 2 por cento de Jerusalém como zona internacional. Israel estabeleceu o seu Estado não só nos 56 por cento previstos pela ONU; mas ocupou mais 21 por cento do Estado palestiniano, totalizando agora 77 por cento. Quando dizem que "ninguém poderá ficar com 100 por cento", o que querem dizer? Isso significa a partilha dos 23 por cento ocupados por Israel. Estão sempre a pedir aos palestinianos que sejam flexíveis. Assim não conseguirão paz.
Quanto à Autoridade Palestiniana, Barghouti criticava a "velha guarda" por corrupção interna e pelo "derrotismo" exibido nas negociações com Israel. Em 2000, Barghouti já não estava a olhar para a esquerda israelita mas para o exemplo do movimento xiita Hezbollah, que forçou o fim da ocupação do Sul do Líbano. Reconhecia, porém, que "Israel não é o clássico colonialista que se combate e regressa a casa": [Depois da vitória do Hezbollah], os palestinianos tornaram-se de certo mais optimistas de que Israel se vai retirar e de que a ocupação vai acabar, finalmente! Os israelitas também se aperceberam do impacto. E o importante é que isto aumentou a pressão sobre a liderança palestiniana e sobre o senhor Arafat, pessoalmente.
A partir de 2000, Barghouti tornou-se o tribuno de uma nova geração de milicianos da Fatah. Actuava em concertação com os grupos islamistas e não contra eles. Definiu a "Intifada armada" como a "guerra de independência" palestiniana. Considerado o chefe da organização político-militar Tanzim (da qual fazem parte as Brigadas dos Mártires de AI-Aqsa), Barghouti foi capturado em Ramallah, em Abril de 2002 durante a reocupação militar da Cisjordânia. Houve quem notasse que, ao contrário do que aconteceu a outros activistas palestinianos, Sharon não quis matar este "terrorista". O seu julgamento, num tribunal civil de Telavive, serviria para criminalizar a liderança palestiniana que Barghouti representava e a causa por que lutava.
Terá havido outro motivo. "Prometo que Barghouti não será morto", disse à revista Jerusalem Report um responsável israelita dos serviços de segurança que não foi identificado. "Preferimos Barghouti a alguém que não conhecemos. E, mais do que isso, tem potencial como um pragmático da 'jovem guarda'. Ele pode mesmo vir a ser um líder." Pra alguns analistas israelitas, o facto de Barghouti não ter sido assassinado pode realmente abrir caminho à possibilidade de um dia ele poder vir a transformar-se no "Nelson Mandela palestiniano". Ao contrário de Arafat, que falava árabe com sotaque egípcio e não dominava o inglês, Barghouti conhece bem a língua do inimigo. Exprime-se fluentemente em hebraico, ensinado pelos seus guardas prisionais, durante a primeira Intifada (1987-1993). Na actual cela, lê os diários Yediot Ahronot e Ha'aretz , os de maior influência, respectivamente, à direita e à esquerda em Israel, dos quais é assinante.
Mais próximo dos movimentos islâmicos do que qualquer outros subsequentes assassínios selectivos levados a cabo pelo exército israelita na Cisjordânia. Barghouti já tinha, porém, mostrado o poder da "jovem guarda" que ele representa.
Em Abril de 2004, em nome de todos os prisioneiros, Barghouti distribuiu um comunicado a apoiar o plano de Sharon de uma retirada total de soldados e colonos da Faixa de Gaza, exortando as facções palestinianas a cessarem todas as formas de resistência armada. Na sua opinião, trata-se "do mais importante resultado da Intifada depois de 10 anos de Oslo, em que nem sequer uma simples caravana foi afastada e o número de colonos duplicou".
Ao exigir "plena soberania palestiniana" em Gaza, Barghouti explicou o que pretendia: marcar uma data para eleições locais e obter um claro compromisso entre os vários grupos quanto à forma de Gaza vir a ser gerida pós a retirada israelita. Para Barghouti, reformas democráticas são essenciais para obter a independência. Por essa razão, muitos o vêem como o único que poderá suceder a Arafat e fazer a paz com Israel. Um dado curioso: recentemente, Barghouti foi retirado do regime de isolamento a que tinha sido submetido para contrariar o peso dos candidatos do Hmas nas eleições para representante dos prisioneiros. Dizia-me ele, em Junho de 2000:
Lembro-me quando fui preso, pela segunda vez, durante a invasão do Líbano de 1978. Durante o interrogatório, depois de 32 dias de tortura, garanti que haveria de ter um Estado e que a Palestina haveria de ser libertada. Disseram-me: "Estás a sonhar. " Em 1987; quando fui deportado - oi Ehud Barak [na altura chefe do Estado-Maior do Exército de Israel] que assinou a minha ordem de deportação -, um oficial israelita gritou-me, na fronteira: "Nunca mais voltarás a ver a Palestina! " Eu espondi-lhe: "Havemos de voltar! " E cá estamos nós na Palestina, parcialmente libertada. Espero que um dia possamos cooperar em conjunto com a nova geração de Israel.
Barghouti poderá não ser o próximo presidente, mas na cadeia vai-se preparando para a liderança. Inquirido pelo jornal Le Monde sobre a existência de uma personalidade suficientemente carismática para suceder a Arafat, o escritor francês de origem palestiniana Elias Sambar respondeu: "O carisma é uma construção. Não se nasce carismático. O mesmo se pode dizer da estatura histórica. (…) Aquele que vai governar o país tem de beneficiar do reconhecimento, não apenas de cada cidadão mas também dos regionalismos bem enraizados no tecido social palestiniano. Yasser Arafat conseguiu federar simultaneamente as regiões e todos os sectores do exílio. Antes de ser uma organização, a OLP era uma espécie de território muito particular para onde convergiam todas as partes do corpo. Muito cedo Arafat surgiu como aquele que permitiu a edificação desse território."
(Retirado de “ARAFAT, a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo” de Margarida Santos Lopes, ed. Público, 2004)