Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O Património Genético Português

10.06.25 | Manuel

pretos.jpg

 Por Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro

As influências de África e do Mediterrâneo: escravas, mouras e judias

A escala temporal das inferências genéticas está limitada pela taxa de mutação. O facto de a taxa de mutação ser muito baixa é benéfico a nível individual porque a muta-ção pode ser patológica. No que diz respeito à Genética Populacional, a baixa taxa de mutação faz com que seja possível inferir, com maior segurança, um passado longínquo. É muito mais difícil elaborar conclusões seguras quanto à História recente, pois as linhagens têm de ter tempo para acumular diversidade de modo a serem datáveis. Esta limi-tação condiciona muito as conclusões que se podem tirar a nível genético de migrações recentes para a população portuguesa. E estas conclusões são tanto mais difíceis quanto mais próximas geneticamente são as populações de origem e de destino das migrações.

Os primeiros estudos de diversidade genética feminina na Europa pareciam apontar para uma diminuição da diversidade desde o Centro-Sudeste, primeira base das duas grandes migrações a partir do Próximo Oriente, em direcção ao Norte e Oeste. Todavia, contrariamente ao que seria esperado pela sua posição limítrofe, Portugal apresenta uma elevada diversidade genética para a componente feminina.

A percentagem de linhagens neolíticas é realmente baixa e, na componente paleolítica, uma elevadíssima percentagem é representada pelo haplogrupo H. Recentemente, mostrou-se que, longe de ser pouco diverso, este haplogrupo H tinha de facto duas linhagens recentes que surgiram na Ibéria e se expandiram para o resto da Europa após o Último Máximo Glaciar, como se referiu no capítulo 4. Contudo, a contribuir para a elevada diversidade mitocondrial de Portugal estão algumas linhagens, numa frequência mensurável, que são vestigiais no resto da Europa. Esta quase ausência no resto da Europa atesta a não contribuição da rota Centro-Sudeste para Norte e Oeste, percorridas pelos paleolíticos e neolíticos, para a sua dispersão. Isto significa que terão sido outras as migrações responsáveis pela integração destas linhagens no património genético português.

As linhagens subsarianas

Relato de um estrangeiro que visitou Évora, em 1535:

Um cavalheiro quando sai no seu cavalo leva dois escravas à frente, um terceiro transporta as rédeas, um quarto esti disponível para escovar o cavalo e outros escravos levam o cha-péu, a capa, os chinelos, as escovas de roupa e o pente do senhor.

(Traduzido de The Slave Trade. The history of the Atlantic slave trade 1440-1870, de Hugh Thomas)

Uma parte dessas linhagens pertence aos haplogrupos cuja distribuição está limitada à África subsariana ou a descendentes de escravos no Novo Mundo. Em Portugal continental, a frequência destas linhagens atinge 3% no Norte, 6% no Centro e 11% no Sul. Quando se compara a diversidade destas linhagens entre si, elas são muito divergentes, isto é, não se identifica qualquer linhagem que tenha rido já tempo para acumular diversidade em Portugal. Estes dados parecem apontar para uma entrada recente deste grupo de linhagens no nosso país.

A entrada de escravos subsarianos e norte-africanos na Europa está documentada desde o período romano e também durante o domínio islâmico. Para os subsarianos, po-rém, os números registados eram insignificantes quando comparados com os valores após os Descobrimentos. Os registos históricos relatam a vinda de escravos subsarianos para a metrópole, com a expansão quinhentista, desde 1440 até pelo menos 1761. O primeiro desembarque de escravos negros, 235 indivíduos de Arguin, na Mauritânia, traficados por portugueses, ocorreu em Lagos, em 1444.

Em 1761, Portugal foi um dos primeiros países a abolir a escravatura, apesar de continuar o tráfico de escravos para as suas colónias. A partir dessa data, foi proibida a entrada de escravos na metrópole, excepto se estes vinham com os seus «senhores» de outros pontos do império. A abolição total da escravatura efectuada por portugueses só ocorreu em 1869. A entrada de escravos em Portugal foi uma das mais elevadas para um país da Europa, tendo representado a maior fasquia nos cerca de 200 000 escravos traficados entre 1450 e 1900 para esta região do mundo. O grande grosso do aporte de escravos feito pelas potências europeias dirigiu-se para os respectivos impérios a serem formados, no Novo Mundo e nas Índias, e não para a Europa, representando aquela fracção uns meros 1,8% dos censos de 11 328 000 escravos traficados (valores que muitas outras estimativas consideram mínimos).

Em Portugal, a inusitada percentagem de escravos chegou a atingir 10% da população do Sul do País em meados do século XVI: em 1550, dos 100 000 habitantes de Lisboa, 10 000 eram escravos, e o resto do País teria cerca de 40 000 escravos residentes; em 1620, Lisboa tinha ainda 10 000 escravos, representando 6% da então população de 165 000 habitantes e, provavelmente, um décimo da população do Algarve seria de escravos. Possuir um escravo era uma marca de distinção. Os escravos desempenhavam as mais variadíssimas tarefas e profissões: desde estivadores a construtores, empregados em hospitais e mosteiros, empregados domésticos, ou meramente decorativos. É deveras curioso que a percentagem de linhagens femininas subsarianas observadas actualmente no Sul de Portugal ronde 11%.

pretos1.jpg

Distribuição das linhagens mitocondriais subsarianas (cinzento-claro) e norte-africanas (cinzento-escuro) em Portugal

Os dados genéticos também são compatíveis para a maior frequência dessas linhagens em Portugal do que no resto da Europa. Só para comparação, as frequências para a Espanha rondam 1% (3% na Galiza e na Catalunha, 2% em Leão e na Andaluzia; 0% em Castela e no País Basco).

A origem dos escravos em África era essencialmente a costa oeste, com o Congo/Angola a dominar uns 23% dos 13 000 000 de escravos exportados; sendo 15% de cada um dos seguintes locais: Senegâmbia/Serra Leoa, Costa dos Escravos e Benim/Calabar; e 12% da Costa do Ouro (Ashanti). De Moçambique, único posto da costa Leste, explorado pelos Portugueses a partir de 1643 quando perderam postos importantes em Angola para os Holandeses, saíram 1 000 000 de escravos (8%). Geneticamente, é possível distinguir na maior parte dos casos a origem das linhagens femininas subsarianas entre costa oeste e costa leste. E das linhagens subsarianas observadas em Portugal, a extensa maioria tem proveniência na costa oeste, como seria de esperar.

pretos2.jpg

 Frequência das linhagens U6 (valores superiores) e subsarianas (valores inferiores) nas diversas regiões da Península Ibérica (adaptado de Pereira et al., 2005)

Alguns «senhores» em Portugal libertavam os seus escra­vos quando no leito da morte. Outros seduziam os escravos, apesar de ser proibido, e libertavam as crianças resultantes, podendo mesmo legitimá-las. Contudo, tal não devia acon­tecer em todos os casos, porque a procriação das escravas chegou a ser incentivada e aproveitada em termos comer­ciais em meados do século xvi. Alguns autores afirmam que todos os tipos de relacionamento eram tidos com escravos negros, chegando algumas mulheres brancas a tê-los como amantes. Contudo, o facto é que, no património genético português, as linhagens masculinas subsarianas existem ape­nas em frequências residuais (0,5-0,7%). Se ocorreram cru­zamentos de mulher portuguesa e homem escravo, estes realizaram-se numa percentagem muitíssimo inferior ao cru­zamento oposto de homem português com mulher escrava. O enviesamento da presença de linhagens subsarianas nos patrimónios genéticos portugueses feminino e masculino deve ser o resultado de enviesamento no tipo de cruzamen­tos mistos. É de excluir como causa uma diferente propor­ção do género dos escravos trazidos para Portugal, porque tal não está registado.

pretos3.jpg

A diáspora subsariana

No que diz respeito à colonização da Madeira e dos Açores, os registos históricos apontam para uma maior fre­quência de escravos na Madeira, onde a introdução da pro­dução da cana-de-açúcar se tinha revelado um sucesso. Um juiz espanhol refere, em 1518, o exemplo de uma viúva da Madeira que possuía 800 escravos. Já em 1552 (a coloni­zação da Madeira e de Porto Santo começou em 1420), 10% da população era constituída por escravos, que se foram tornando subsequentemente proprietários. Nos Açores, cuja colonização começou em 1432, feita essencialmente por migrantes de Portugal continental e da Madeira, a propor­ção de escravos nunca atingiu proporções tão elevadas.

A nível genético verificou-se que a proporção de linha­gens femininas subsarianas rondava os 13% na Madeira e uns meros 3% nos Açores. A nível do património genético masculino, as linhagens subsarianas eram residuais, como acontecia no continente.

Continua

Imagem de destaque: Peditório de Nossa Senhora da Atalaia, de Sketches of Portuguese Life, 1826.

(O Património Genético Português – A história humana preservada nos genes. Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro. Gradiva, 2009).