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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O poder judicial não escrutinado pelo voto descredibiliza a democracia

10.11.23 | Manuel

 

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Crónica escrita em 2016 e actualíssima atendendo aos factos recentes: a demissão do governo PS graças à intervenção da PGR - um poder de facto não escrutinado pelo voto do cidadão, benevolente com a corrupção, excepto a de políticos a abater  pelo establishment (a judicialização da política), e o abuso de poder.

A corrupção está nos genes do capitalismo e da oligarquia dominante, não basta promulgar algumas medidas avulso que, as mais das vezes, nem sequer há a intenção de as fazer aplicar na prática, Portugal deve ser o estado da UE que mais leis tem feito mas que não as aplica e ninguém (as elites) as respeita. A tão criticada intenção do governo em aprovar a quebra do sigilo bancário para depósitos acima dos 50 mil euros, seria uma delas, mas mesmo formalmente governo e presidente Marcelo entenderam que o momento não era oportuno, já que a economia não está bem, não cresce como devia, assim deixa-se proliferar a economia paralela através da fraude e da fuga ao fisco e de outras traficâncias geralmente tidas como próprias do submundo do crime como forma de enriquecimento da burguesia, vulgo “economia nacional”.

Pois é, e de crimes que se trata, num só dia três factos foram notícia, e bem reveladores da natureza da economia que temos e do estado que a protege e fomenta: seis graduados da Força Aérea, uma das partes do exército permanente burguês e capitalista, foram detidos por suspeita da prática de crime de corrupção, activa e passiva, que terão lesado os cofres públicos em cerca de 10 milhões de euros, contas com certeza feitas por baixo (1); facto bem revelador do que se passa no resto das ditas Forças Armadas e no resto da Administração Pública; um agente da PSP é detido pela PJ por suspeitas de rapto, ofensas à integridade física qualificada e extorsão agravada (2); e o Tribunal de Braga determinou o arquivamento do processo em que três antigos responsáveis da associação PME Portugal eram acusados de fraude na obtenção de subsídio num montante superior a 7 (sete!) milhões de euros (3). Os factos falam por si, valem mais do que mil discursos.

Contudo, não se pode deixar de analisar os factos: oficiais e sargentos roubam o estado, alguém poderá dizer que a democracia burguesa saída do 25 de Abril é responsável, que é o regabofe do nem rei nem roque, e vem Salazar que estás perdoado! Deve-se relembrar que o roubo e a corrupção dentro das Forças Armadas, o putativo principal pilar da defesa da Pátria e da Nação, sempre estiveram presentes e proliferaram livre e impunemente no tempo do regime fascista; quem esteve na guerras colonial em África sabe de conhecimento vivido de que houve oficiais e sargentos, quer do quadro permanente, quer do quadro miliciano, que enriqueceram rapidamente em uma ou duas comissões, os caixotes que enviavam para a então Metrópole vinham sempre bem recheados, alguns deles feitos de madeiras exóticas, roubadas tal com o recheio, que depois serviram para forrar os tectos das moradias construídas na terra. A guerra colonial acabou com mágoa de muitos graduados do quadro permanente e não foi com certeza por razões meramente ideológicas. Como a natureza das forças armadas permanentes não mudou, depois deste tempo todo, bem pelo contrário, reforçou-se pelo facto de se ter acabado com a conscrição; agora, para além de serem permanentes são constituídas inteiramente por mercenários, gente cujo móbil é o dinheiro. Esta seria por si só uma boa razão para se acabar com elas, para além de ser um instrumento da classe, a burguesia, no poder.

Os corpos policiais, sem excepção, mas com alguma incidência para a GNR, onde para além dos casos de corrupção proliferam os casos de assassínio do cidadão indefeso, relevam do mesmo mal das forças armadas, são instituições para a repressão dos trabalhadores e do povo e de defesa das elites e da sua propriedade privada. Não servem, nem lhes está no ADN, ter como missão principal, embora a propalem no discurso, a defesa de toda a sociedade, isto é, de todos os cidadãos de forma igual; cidadãos esses, pela mesma teoria, serão iguais perante a lei e as instituições do estado. Na prática, verifica-se que alguns cidadãos são mais iguais que outros, e quanto à protecção da propriedade há alguma que também é mais igual do que outra, a polícia não actua da mesma forma quando alertada para o assalto a uma residência ou a um banco, e quanto a residência a actuação também é diferente se se trata da de um rico ou da de um pobre. As polícias sofrem do mesmo mal do exército permanente, ou talvez ainda pior, são também “permanentes”, são constituídas por profissionais, não sujeitos ao escrutínio e, por essa razão, representam um cargo vitalício que, inclusivamente na aposentação, têm regras diferentes das dos restantes trabalhadores da Função Pública ou dos do regime da Segurança Social.

O referido outro poder de estado, o poder judicial, os tribunais e os juízes, o tão proclamado poder “independente”, hipoteticamente dos outros dois, o executivo e o legislativo, sofre dos mesmos males. No caso referido, o Ministério Público formulou uma primeira acusação que apontava para uma fraude superior a 7 milhões de euros, como esta não teria pernas para andar, formulou uma segunda que já apontava só para 4,5 milhões de euros; ora, esta actuação do MP foi facilmente rebatida pelos advogados de defesa que alegaram que aquela violava a lei, acabando o tribunal por lhes dar razão, determinando extinto o procedimento criminal. Para se perceber os meandros da nossa justiça, iremos ao pormenor que é conhecido pela imprensa: segundo o juiz presidente, "o MP não podia declarar nula a primeira acusação, substituindo-a por outra", porque essa actuação configura uma "subversão do quadro legal do processo penal", assim o MP terá cometido "um atropelo grosseiro" dos princípios do processo justo e da igualdade de armas e "violou claramente" o princípio da irretratabilidade da acusação; e como tal, o tribunal declarou a inexistência jurídica da segunda acusação e a nulidade da primeira, neste caso por considerar que se tratava apenas de uma "longa descrição" dos meios de prova e de uma "referência genérica" aos factos, "sem concretização" dos actos praticados. Perante o descrito, os eventuais criminosos de colarinho branco vão-se safando por duas vias: erros processuais e aparente actuação incorrecta do MP e por vezes da própria PJ (vários casos de utilização de escutas telefónicas sem validação por um juiz, por exemplo) que estoiram com o processo. O engraçado é que muitas das leis em vigor foram feitas por advogados de grandes escritórios que conhecem bem os alçapões das ditas e facilmente ganham a causa, para além de principescos honorários. Tudo pago pelo Zé. Iniludivelmente, trata-se de uma justiça de classe: as leis são ambíguas e quem devia investigar e acusar até parece que faz de propósito quanto aos “atropelos grosseiros”, consoante o estatuto social do arguido.

Pode dizer-se que a justiça até funciona, que há pessoas sérias nestas áreas do poder policial e judicial, sem dúvida!, mas o que se trata aqui é da natureza de classe destas instituições do estado e do próprio estado, que é um aparelho de dominação de uma classe sobre as outras. Poderes que não são directamente escrutinados. Quanto ao poder judicial, arrogante e não escrutinado, exercido por elementos que arvoram diversas regalias, que se encontram bem longe do alcance de qualquer trabalhador, mas por este bem pagas, como seja subsídio de residência, isentos de impostos, embora os juízes já não mudem de comarca como deveria acontecer para não haver interesses instalados, ou terem um sindicato como se fossem assalariados e não num órgão de soberania, ao mesmo tempo patrões e empregados, beneficiando do bem bom dos dois estatutos. Vitalícios e sem prestarem contas a ninguém – parecendo estar acima da lei, muitas das vezes – só podem dar no autoritarismo, como no caso da bolseira e investigadora Maria de Lurdes Lopes Ribeiro, condenada a três anos de prisão efectiva por ter cometido, no entender do tribunal, crimes de difamação e injúria contra juízes e magistrados pelo facto de se ter sentido injustiçada. Esta é a face fascista de um poder não eleito, que não foi beliscado com o 25 de Abril; relembremos que os juízes do antigo Tribunal Plenário, controlado pela Pide, puderam gozar pacificamente as suas reformas nesta democracia de opereta.

Esta face que revela a verdadeira natureza de um poder anti-democrático está a vir ao de cimo à medida que se vai descredebilizando o poder político, ou seja, o governo e o parlamento, e mais outro caso bem revelador desta realidade: o cidadão que ousou responder ao deputado laranja Carlos Peixoto por este ter designado a terceira idade de "peste grisalha", vai ser obrigado a pagar a este parasita uma indemnização de 3 mil euros, acrescida de 1200 euros de multa. Será mais um caso que irá para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e onde o estado português, mas não os juízes responsáveis pela sentença, irá ser condenado, já lá vão não sei quantas condenações, umas por violação da liberdade de expressão, ou por morosidade da justiça, ou por violação da intimidade da vida privada e familiar, e por aí fora. Talvez esta tenha sido a única área em que houve avanços pelo facto de Portugal se encontrar na União Europeia, a cultura e o espírito das instituições do estado, e de muitos dos detentores ao mais alto nível, é o do respeitinho, do manda quem pode e obedece quem deve, à boa maneira salazarista. Foram e continuam a ser muitas dezenas e até centenas de milhares de euros de indemnização pagas pelo estado, mas que deveriam sair dos bolsos de juízes e de polícias pelos erros grosseiros e actos de puro autoritarismo que atentam contra a liberdade, os direitos e a dignidade do cidadão.

Segundo norma do Código de Justiça Militar e Regulamento de Disciplina Militar, que ainda vigorava até há algum tempo, o militar que deixasse fugir um preso ia para o lugar dele como castigo, em casos semelhantes na justiça, o magistrado acusado de “atropelo grosseiro”, como aconteceu no caso relatado, deveria ir para o lugar dos arguidos absolvidos, isto num primeiro passo, porque os habilidosos que agora escapam à justiça deveriam ser de novo julgados e caso se comprove a acusação, os 7 milhões de euros para algum lado foram, deveriam ser condenados, para além de prisão, com o arresto de todos os seus bens e obrigados a trabalhar no duro. Todos os cargos de poder devem ser preenchidos por pessoas dignas e sérias através do escrutínio democrático, não há cargos vitalícios, e a todo o momento revogáveis. Este foi um dos melhores ensinamentos legados pela Comuna de Paris, mas que os partidos que ainda se reivindicam do comunismo e do marxismo se esqueceram há muito. O serviço de policiamento deve ser feito por cidadãos livremente eleitos, assim como os juízes, e o exército é o povo em armas com os oficiais também livremente eleitos e revogáveis.

Notas:

1) https://www.publico.pt/2016/11/03/sociedade/noticia/pj-detem-cinco-militares-da-forca-aerea-por-suspeita-de-corrupcao-1749823

2) https://www.dn.pt/sociedade/pj-deteve-dois-homens-um-dos-quais-agente-da-psp-por-rapto-5477811.html

3) https://www.publico.pt/2016/11/02/sociedade/noticia/tribunal-arquiva-processo-de-burla-milionaria-por-erros-do-ministerio-publico-1749676

05 de Novembro 2016