Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O pseudo-hermafrodita masculino

07.10.23 | Manuel

 

Hermafrodita.jpg

Em última análise, o nosso sexo é definido pelos nossos genes, os quais, no caso dos seres humanos, se encontram agrupados no interior de cada uma das células do corpo em vinte e três paras de pacotes microscópicos designados por cromossomas. Um membro de cada um dos nossos vinte e três pares foi herdado da nossa mãe e o outro membro do nosso pai.  Os vinte e três paras de cromossomas humanos podem ser numerados e distinguidos uns dos outros através de diferenças que têm a ver com o seu aspecto. Nos pares 1 a 22, os membros de cada par parecem idênticos quando observados ao microscópio. Apenas no caso do par de cromossomas 23, os chamados cromossomas sexuais, é oque os dois membros diferem, e isso apenas é verdade para o caso dos homens, que possuem um cromossoma grande (designado por cromossoma X) emparelhado com um de pequenas dimensões (cromossoma Y). As mulheres, pelo contrário, possuem dois cromossomas X emparelhados.

O que fazem os cromossomas sexuais? Muitos genes pertencentes aos cromossomas X especificam características não relacionadas c0m o sexo, tais como a capacidade de distinguir as cores vermelha e verde. O cromossoma Y, pelo contrário, contém genes que especificam o desenvolvimento dos testículos. Ao fim da quinta semana de gestação, os embriões humanos de ambos os sexos desenvolvem uma gónada «bipotencial» que tanto se pode transforrnar num testículo como num ovário. Caso esteja presente um cromossoma Y por volta da sétima semana esta gónada bivalente empenha-se em se tornar um testículo, mas, caso não exista um cromossoma Y, a gónada aguarda pela décima terceira semana para se transformar em ovário.

Este facto pode parecer surpreendente: dever-se-ia esperar que o segundo cromossoma X das raparigas desse origem a ovários, e o cromossoma Y dos rapazes a testículos. Na verdade, porém, pessoas que excepcionalmente possuem um cromossoma Y e dois X desenvolvem-se como a maioria dos homens, enquanto pessoas com três ou apenas um cromossoma X se desenvolvem como a maioria das mulheres. Assim, a tendência natural do nosso gene bivalente é no sentido de desenvolver um ovário caso nada interfira; para o transformar num testículo é necessário algo extra, concretamente um cromossoma Y.

É tentador reformular este facto simples em termos emocionalmente conotad0s. Segundo o endocrinologista Alfred Jost, «transformar-se em macho é uma empresa prolongada, difícil e arriscada; é uma espécie de luta contra a tendência inerente para a feminilidade». Os machistas poderão ir mais longe e saudar a transformação em homem como uma tarefa heróica, considerando que a transformação em mulher, pelo contrário, representa a fácil posição de reserva. Inversamente, pode-se olhar para a condição feminina como o estado natural da humanidade, não passando os homens de uma aberração patológica, que lamentavelmente deve ser tolerada como preço necessário a geração de mais mulheres. Quanto a mim, prefiro simplesmente verificar que um cromossoma Y altera o desenvolvimento da gónada da pista ovárica para a pista testicular, e não tirar conclusões metafísicas.

No entanto, um homem é mais do que apenas testículos. Um pénis e uma glândula da próstata estão entre as muitas outras necessidades óbvias da virilidade, do mesmo modo que as mulheres precisam de mais do que apenas ovários (por exemplo, uma vagina dá jeito). Verifica-se que o embrião encontra-se equipado com outras estruturas bipotenciais para além da gónada primordial. Ao contrário desta última, porém, estas estruturas bipolares possuem um potencial que não é directamente especificado pelo cromossoma Y. Em vez disso, as próprias secreções produzidas pelos testículos é que canalizam estas outras estruturas no sentido de se tornarem órgãos masculinos, enquanto a ausência de secreções testiculares as encaminha no sentido de se tornarem órgãos femininos.

Por exemplo, no decurso da oitava semana de gestação os testículos iniciam a produção da hormona esteróide testosterona, parte da qual é convertida na hormona esteróide intimamente relacionada, a di-hidrotestosterona. Estes este esteróide (conhecidos como androgénios) convertem algumas estruturas embrionárias polivalentes na glande do pénis, no corpo do pénis e no escroto; as mesmas estruturas transformar-se-iam, na hipótese contrária, no clitóris, nos grandes e nos pequenos lábios. Os embriões também começam preparados para ambas as possibilidades com dois conjuntos de vasos, os vasos de Muller e de Wolf. Na ausência de testículos, os vasos de Wolf atrofiam, ao passo que os vasos de Muller se transformam no útero, trompas de Falópio e vagina do feto feminino. Com os testículos presentes, passa-se o contrário: os androgénios estimulam os vasos de Wolf a transformar-se nas vesiculas seminais, vas deferens e epidídimo do feto masculino. Ao mesmo tempo, uma proteína testicular, designada hormona inibidora de Muller, faz exactamente o que o seu nome sugere: impede os vasos de Muller de se transformarem nos órgãos internos femininos.

Uma vez que um cromossoma Y especifica a formação dos testículos, e a presença ou ausência das secreções dos testículos especifica as restantes estruturas masculinas ou femininas, poderia parecer que nunca seria possível um ser humano em desenvolvimento acabar por ter uma anatomia sexual ambígua. Pelo contrário, poder-se-ia pensar que um cromossoma Y deveria ser uma garantia de órgãos 100% masculinos, e que a falta do mesmo deveria garantir órgãos 100% femininos.

Na verdade, é necessária uma longa série de passos bioquímicos por forma a produzir todas as outras estruturas para lá do ovário e dos testículos. Cada um desses passos envolve a síntese de um ingrediente molecular, designado enzima, e que é especificado por um determinado gene. Qualquer enzima pode ser defeituoso ou estar ausente se o seu gene subjacente for alterado por uma mutação. Assim, um defeito num enzima pode resultar numa pseudo-hermafrodita masculina, definida como alguém que possui algumas estruturas femininas e também testículos. Num pseudo-hermafrodita com defeito num gene, há um desenvolvimento normal das estruturas masculinas dependentes dos enzimas que actuam nas fases do percurso metabólico anterior ao enzima defeituoso. No entanto, as estruturas masculinas dependentes do próprio enzima defeituoso ou de fases bioquímicas posteriores não se conseguem desenvolver e ou são substituídas ou são substituídas pelo seu equivalente feminino. Por exemplo, há um tipo de pseudo-hermafrodita que tem a aparência de uma mulher normal. Na verdade, «ela» aproxima-se mais do ideal masculino de beleza feminina do que a mulher média, pois os seios «dela» são grandes e as pernas longas e bem torneadas. Daí que se tenham revelado vários casos de modelos belíssimas que só se aperceberam que eram homens com um gene mutante quando, já adultos, fizeram testes genéticos.

Uma vez que este tipo de pseudo-hermafrodita parece uma bebé normal quando nasce e tem externamente um desenvolvimento e puberdade normais, é provável que o problema não possa ser reconhecido no dia em que a «rapariga» adolescente vai ao médico porque ainda não começou a ser menstruada. Nessa altura, o médico descobre a razão simples da deficiência: o paciente não tem útero, trompas de Falópio, nem a parte superior da vagina. Em vez disso, a vagina termina subitamente com apenas cinco centímetros. Um exame mais pormenorizado revela testículos que segregam testosterona normal, que são programados por um cromossoma Y normal e que são anormais unicamente no facto de se encontrarem escondidos no interior das virilhas ou dos lábios. Por outras palavras, a bela modelo é um homem normal em tudo excepto no facto de possuir um bloqueador bioquímico geneticamente determinado à sua capacidade de responder à testosterona.

Sabe-se que este bloqueador se situa no receptor celular que normalmente ligaria a testosterona e a di-hidrotestosterona, possibilitando assim a estes androgénios desencadearem as etapas subsequentes do desenvolvimento do homem normal. Uma vez que o cromossoma Y é normal, os testículos desenvolvem-se normalmente e produzem a hormona inibidora de Muller normal, a qual actua em qualquer homem no sentido de impedir o desenvolvimento do útero e das trompas de Falópio. No entanto, 0 desenvolvimento da habitual parafernália masculina de resposta a testosterona é interrompido. Daí que o desenvolvimento dos restantes órgãos sexuais embrionários bipotenciais siga a partida o canal feminino: genitais externos femininos e não masculinos, e atrofia dos vasos de Wolf e por consequência dos genitais internos masculinos potenciais. Na verdade, uma vez que os testículos e as glândulas supra-renais segregam pequenas quantidades de androgénio que seriam normalmente anuladas pelos receptores de estrogénio, a falta completa destes receptores em forma funcional (eles estão presentes em pequeno número nas mulheres normais) faz que o homem pseudo-hermafrodita possua uma aparência exterior super-feminina.

Sendo assim, a diferença genética global entre homens e mulheres é ténue, apesar das consequências serem consideráveis. Um pequeno número de genes do cromossoma 23, actuando concertadamente com os genes de outros cromossomas, determina em última análise todas as diferenças entre homens e mulheres. É evidente que estas diferenças incluem todas as que se referem aos próprios órgãos reprodutivos, mas também as que se verificam após a adolescência e estão relacionadas com o sexo, tais como a barba, pélo no corpo, tom de voz e desenvolvimento dos seios.

Imagem: Hermafrodita. Época Romana, Séculos II-III

(“Porque gostamos de sexo – a evolução da sexualidade humana”, Jared Diamond. Temas e Debates, 2001)