O regicídio: Alfredo Costa e Buíça: heróis ou criminosos?
Nem todas as mortes possuem o mesmo peso, elas valem pelo significado que têm para as pessoas queridas ou para a classe social a que pertencem e cujos interesses se encontram subordinadas. Os matadores do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro são criminosos para os partidários da monarquia e dos defensores das actuais classes possidentes e respectivo status quo, mas heróis para os partidários da república nos princípios do século XX e das classes submetidas à exploração, à tirania e à injustiça de todos os tempos e independentemente da nacionalidade. Heróis ou criminosos, uma questão de classe.
Em 31 de Janeiro de 1891 rebentou no Porto o primeiro movimento revolucionário republicano, que foi violentamente reprimido pelo regime monárquico – acontecimento que foi pobremente relembrado pelos actuais democratas e republicanos, que se esquecem de que a democracia, com as liberdades e direitos individuais que eles tanto incensam, a devem a esses primeiros lutadores que sacrificaram a própria vida por um ideal; os monárquicos afadigam-se na tarefa de revisão da história e não enjeitam a provocação. A morte do rei e do herdeiro do trono possui um significado político e simboliza o estertor de um regime retrógrado, corrupto, responsável pelo atraso do país (o mais atrasado da Europa) e profundamente desprezado pelo povo; o monarca era uma personagem inútil, corrupto e cioso dos seus privilégios e cujo modo de vida era, juntamente com a família, delapidar o erário público que nunca era suficiente para satisfazer os apetites de quem, no dizer de Aquilino, “ primava na guitarra, nos touros, na caça, tudo geórgica e santo ripanço”.
João Franco, o odiado primeiro-ministro nomeado pelo rei, governou em ditadura, rasgou a Carta Constitucional, reprimiu ferozmente trabalhadores, republicanos e até sectores dissidentes da monarquia, encheu as prisões e sobrelotou os navios com desterrados para o exílio das colónias, os assassínios de opositores e de trabalhadores em greve era acontecimento corrente no reinado de D. Carlos. O monarca não poderia deixar de ser responsabilizado pela situação em que o país se encontrava, com a agravante da obsessão – e é bom salientar – de encontrar sempre expediente em sacar mais dinheiro ao erário público a fim de fazer face aos gastos crescentes da sua vida ociosa e demais elementos da corte, onde primava a corrupção e o deboche. Tanto o rei como a rainha eram tristemente famosos, sendo objecto de inúmeras anedotas e da chacota do reino, pelas aventuras amorosas, não escondendo D. Amélia os seus apetites sexuais vorazes, que não olhavam a sexo, o que constituía um escândalo, para mais, naqueles tempos e numa sociedade fechada e ainda muito ruralizada.
É deprimente assistir-se ao espectáculo ridículo dos cronistas do reino contemporâneos, tipo Rui Ramos, que se esfalfam em apresentar o rei D. Carlos como o “primeiro chefe de estado” português do século XX, como se isso lhe conferisse alguma importância particular, como um “homem bom”, um “amante da Constituição”, que mais não passam de tremendas falsidades facilmente desmascaradas pelos factos; o discurso agora desenvolvido de que teria sido um “grande artista”, um “amante das ciências” e da “vida do mar” são enfeites para justificar a sua vida ociosa e de desprezo para com o povo, que lhe retribuía na mesma moeda, ilustrado nas palavras que proferia sempre que regressava de viagem no iate real, pago com o sangue e suor do povo: “Lá voltamos nós outra vez para a piolheira!”. Portugal era – e é bom repeti-lo – o país mais atrasado da Europa em termos económicos e culturais e as “reformas” não se destinavam, como alguém querer comparar agora à política “reformista” de Sócrates, em modernizar o país, mas para obrigar o povo a fazer mais sacrifícios a fim de pagar a bancarrota crónica das finanças públicas.
A notícia da morte do último monarca português foi aplaudida pela maioria do povo, como bem relata o correspondente do “Jornal de Frankfurt” a propósito de um lojista que teve a ousadia de colocar no seu estabelecimento uma bandeira monárquica como forma de luto pela morte do rei: “Desde que tive conhecimento do sucedido, pus a bandeira a meia-haste. Mas imediatamente os meus clientes e as pessoas das minhas relações acorreram a interpelar-me sobre se eu tinha perdido o juízo ou se queria liquidar as minhas amizades. Perguntei-lhes se eles não achavam que as pessoas, de qualquer maneira, experimentavam um sentimento de comiseração. Você, meu caro senhor, não pode imaginar as coisas que eu ouvi! Não tive outro remédio senão esconder a bandeirinha”.
Manuel Buíça e Alfredo Costa
O povo escondia o seu pesar pela morte de um indivíduo pelo qual não possuía qualquer estima, substituindo-o pelo regozijo, tal como o faziam muitos socialistas nos parlamentos por essa Europa republicana fora. Para a classe operária e para o povo, nomeadamente de Lisboa, a vida do monarca odiado não teve qualquer peso. Mas a morte de Manuel Buíça e de Alfredo Costa já teve, eles sacrificaram a vida para apressar o fim de um regime execrado. A romagem aos túmulos dos denominados regicidas foi feita ininterruptamente até 1940 e só foi interrompida pela destruição dos mesmos a mando do regime fascista. Salazar temia pela vida e relembrar os heróis da república era um mau exemplo, exactamente como pensam os actuais políticos burgueses e, como não pôde deixar de afirmar o palhaço pretendente a uma coisa não existe, que atentados contra chefes de Estado não são bons exemplos. Se os actuais políticos temem pela vida é porque são capazes de sentirem também a consciência pesada.
Erguer uma estátua ao último monarca português é uma provocação vil que bem demonstra a natureza de carácter da classe política nacional mais ligada ao poder, cada vez mais igual aos seus congéneres monárquicos e sintoma da degenerescência do actual regime político. Porta aberta para que, mais dia, menos dia, em outra homenagem semelhante, os mesmos políticos com Cavaco à frente venham a erguer uma estátua ao velho ditador de Santa Comba que, como querem fazer crer os nosso revisores da história, até teria sido boa pessoa se não fossem as más companhias que o rodeavam, tal como o seu antecessor monárquico.
A única coisa que nos merece referência em relação à morte de D. Carlos é que a violência exercida foi insuficiente, sofreu do espírito de conspiração que predominava na época, deveria ter-se estendido a toda a classe de políticos, que o rodeavam e o vieram substituir, e ser exercida pelas massas, numa consequente revolução socialista que substituísse a monarquia por uma república operária a exemplo da Revolução Bolchevique. A revolução republicana de 1910 não derrubou os alicerces do Antigo Regime e o resultado não se fez esperar, dezasseis anos depois instalou-se o fascismo salazarista, numa versão modernizada da monarquia do século XIX, e ao que agora se assiste por força na integração na União Europeia deveria ter acontecido no princípio do século passado. Ficamos parados um século a contemplar a História.
Coimbra, 03 de Fevereiro de 2008
Imagem de destaque: Monumento funerário erguido a Alfredo Costa e Manuel Buíça que foi destruído por Salazar em 1940 e que urge reerguer em memória de quem sacrificou a vida pela liberdade e pela democracia. Cada classe tem os seus heróis e estes, mesmo que as suas acções não tivessem sido as mais adequadas ou eficazes, são indubitavelmente heróis populares.
Bibliografia: "D. Carlos I, Rei de Portugal", Jean Pailler. Bertrand Editora, 2005.