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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O Salazarismo na Guerra de Espanha

02.11.23 | Manuel

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Texto de Francisco de Oliveira Pio:

O brilhante jornalista Osório Borba, que vem fazendo, num grande matutino desta capital, uma análise crítica acertadíssima do fascismo peninsular, contava-nos, há tempo, um saboroso episódio. Tratava-se, nada mais, nada menos, que do diálogo político que ele tivera a coragem de sustentar com um português salazarista. Naturalmente, com aquela mentalidade antediluviana que a propaganda salazarista incutia nas suas hostes, o homem confundia o governo com o país e o regime com a nação, considerando como ataques dirigidos a Portugal toda a crítica ao seu sistema político. E, à falta de melhor argumento para defender o indefensável, ele acabou resmungando: “Afinal, cada um manda na sua terra!”

Este conceito, a que Osório Borba chamou impertinência, mas a que eu chamarei grosseria, porque, além de muitas outras circunstâncias, que seria fastidioso enumerar, é pretender negar no Brasil, como há 33 anos vêm negando em Portugal, um dos mais nobres postulados da democracia, que é o da liberdade de pensamento e de expressão, traduz um critério que toda a gente pode ter, excepto os salazaristas, ao menos para guardarem alguma coerência entre aquilo que dizem e aquilo que fazem. O salazarismo não pode dizer a ninguém: "Cada um manda na sua terra!", porque ele deu ao mundo uma vergonhosa demonstração do seu desprezo por esse princípio da ética internacional, intrometendo-se, pela forma mais indigna e mais criminosa, em assuntos privativos da terra alheia. E digo "criminosa", porque essa intromissão não se concretizou numa acção platónica de crítica objectiva, como aquela que se lhe vem fazendo aqui, pondo a nu toda a sua podridão e falsidade, mas sim levando a destruição e a morte a um povo irmão, amigo e vizinho.

Diz a propaganda salazarista, na vã tentativa de justificar esse acto de ganguesterismo, que a Espanha se encontrava então mergulhada na "subversão", na "desordem", no "caos", e não sabemos se em mais alguma coisa, pondo assim em risco a tal história da "Civilização Ocidental", cuja expressão máxima eram já, nessa época, os campos de concentração de Dachau, Lipari e Tarrafal. Ouvimos essa cantiga, a propósito de todos os países sobre os quais o fascismo lançou as suas garras. Mas, supondo, por um momento, que assim era, que tinha o salazarismo que ver com isso se, como dizem os salazaristas daquém e dalém-mar, "cada um manda na sua terra"? Que lhes poderia importar que a Espanha fosse vermelha, azul ou verde, se tal era a vontade do povo espanhol?

Porém, o mais superficial exame, desde que honesto, da situação política e social da Espanha nas vésperas da rebelião franquista, revelava com clareza meridiana a falsidade de semelhante asserção. Tão grosseira mistificação só poderia enganar Chamberlain e o seu guarda-chuva.

Em 17 de Julho de 1936, a Espanha vivia num regime de absoluta normalidade constitucional, dentro das mais puras regras democráticas. As eleições de Fevereiro, que haviam posto fim ao "biénio negro", durante o qual o filofascista Gil Robles e o republicano renegado Alexandre Lerroux deram nas Astúrias a tónica do que mais tarde viria a ser o terrorismo sanguinário dos falangistas, tinham reintegrado a República no caminho da liberdade e do progresso, tão auspiciosamente iniciado em 14 de Abril de 1931. O seu governo, genuína expressão da vontade popular, amplamente demonstrada naquelas memoráveis eleições, estava constituído por eminentes homens de Estado, saídos das correntes políticas e sociais mais fortemente representadas na Câmara. O apoio que lhe prestavam as duas grandes centrais do movimento operário espanhol, a União Geral dos Trabalhadores e a Confederação Nacional do Trabalho, dava a este governo um carácter de verdadeira representação nacional. Presidia à República D. Manuel Azaña, a maior revelação política da Espanha deste século. Ocupava a presidência das Cortes o ilustre D. Diego Martínez Barrios, actual presidente da República no exílio. Chefiava o governo o Sr. Casares Quiroga, líder dos autonomistas galegos. E estes homens, que eram indiscutivelmente uma garantia de moderação e honestidade na administração da República, eram igualmente uma garantia de sobrevivência e progresso da democracia espanhola.

A par deste panorama político, em perfeita concordância com as mais rígidas fórmulas constitucionais e democráticas, observava-se, em Julho de 1936, uma crescente melhoria das condições económicas do país e uma gradual elevação do nível de vida do povo espanhol. A conhecida socióloga Margarida Nelken dizia, pouco depois de implantada a República, que "metade dos filhos de Espanha nunca tinha comido a fartar uma só vez na vida". Era esse o problema essencial que, apesar de todas as obstruções, a República procurava resolver.

A reforma agrária, bem tímida na verdade, porque se limitava apenas à expropriação dos latifúndios que os grandes senhores feudais mantinham improdutivos, ia, pouco a pouco, transformando os mais pobres camponeses, até ali num verdadeiro estado de servidão, em pequenos proprietários rurais. O ajustamento de salários aos trabalhadores de Andaluzia, Extremadura e Castela repercutia num aumento de produção nas fábricas têxteis da Catalunha. Os preços estavam estabilizados, num relativo equilíbrio com os salários. As actividades agrícolas, industriais e comerciais iam em crescendo, porque os trabalhadores, ganhando mais, podiam comprar mais. A peseta estava valorizada, e a circulação fiduciária tinha uma cobertura metálica de 68%, então só ultrapassada pelos Estados Unidos. Toda a nação estava em marcha na senda do progresso, confiante nas suas enormes faculdades criadoras. A Espanha dava ao mundo um magnífico espectáculo de vida e cor, com a atmosfera movimentada e ruidosa dos seus cafés, a policromia das suas calles, a alegria comunicativa das suas verbenas. O povo espanhol era feliz, porque era um povo livre.

De repente, partido de Lisboa, Berlim e Roma, o furacão devastador do fascismo abateu-se sobre o povo espanhol. Durante três longos anos, a Espanha foi teatro das cenas mais canibalescas que a imaginação humana possa conceber. Três mil pessoas massacradas em poucas horas na praça de touros de Badajoz, pelo crime de não serem falangistas. Popul ações inteiras, fugindo com os seus pobres haveres das zonas ameaçadas, aniquiladas em horríveis matanças, nas estradas e nos caminhos, pelos aviões fascistas voando a baixa altitude, para que nem as crianças pudessem escapar. Federico García Lorca, um dos mais altos espíritos da Espanha contemporânea; Salvador Vila, reitor da Universidade; professores, médicos, advogados, estudantes, operários, num total de 23 000 pessoas assassinadas só na cidade de Granada. Guernica e Durango, cidades onde não existia um único objectivo militar, pulverizadas numa operação de treinamento pelos aviões de Hitler e Mussolini, sem deixarem uma só casa em pé, um só habitante com vida. Bordas mouras e falangistas, assassinando à baioneta os feridos que encontravam nas ambulâncias e hospitais das povoações que iam ocupando. As Vascongadas e as Astúrias afogadas num verdadeiro mar de sangue, como represália pela resistência oposta ao invasor. Mulheres e crianças violadas e, em seguida, assassinadas, pelos kabilas mouros e os marginais da Legião Estrangeira. O cortejo macabro dos falangistas levando um cadáver de Granada ao Escorial e assassinando em massa os detidos que enchiam as cadeias de todas as povoações por onde passavam.

Quando este furacão amainou (porque a guerra de morte movida pelo franquismo contra o povo espanhol só virtualmente terminou em 1939), todo o país era um vasto campo em ruínas, onde só reinavam o sofrimento, a miséria, a opressão e a tirania. E à cabeça dos grandes responsáveis, perante a História, por este crime sem nome, cometido em Espanha, está o salazarismo. Porque, sem a ajuda substancial que ele prestou, desde a primeira hora, aos rebeldes franquistas, que lhes deu tempo para aguardar o reforço do formidável potencial militar de Hitler e Mussolini, a insurreição teria sido varrida de toda a Espanha em poucos dias, como fora varrida de Madrid e Barcelona, seus mais fortes baluartes, pela decisão e pela heroicidade do povo espanhol. Razão tinham os estudantes brasileiros, ao dizerem, há dias, que "alguém faltou em Nuremberg" 1.

A Guerra de Espanha, a que não pode chamar-se uma guerra civil, mas antes uma guerra promovida pelas forças coligadas do fascismo internacional contra o povo espanhol, não foi consequência imediata da morte de Calvo Sotelo ou da agitação reinante em Julho de 1936. Isso não foram mais que circunstâncias, propositadamente provocadas, de acordo com a boa técnica fascista e hitleriana, para justificar uma insurreição que já de longa data vinha sendo preparada. As suas verdadeiras causas devem procurar-se no ódio intrínseco que a reacção espanhola votava à República, pelo temor de ver cerceados os seus seculares privilégios; na aversão que tinha pela democracia a grande maioria do exército, onde reinava um espírito de casta, só igualado pelo antigo exército prussiano; nas necessidades de ordem política e estratégica do eixo Berlim-Roma, e na sua projectada guerra pelo domínio da Europa, como bem claramente ficou demonstrado no célebre relatório do general alemão Von Reichenau, que franceses e ingleses parecem não terem lido 2.

O Estoril, que sucedeu à Viena de Áustria dos séculos XVIII e XIX, como centro de intriga da reacção internacional contra a liberdade e a emancipação dos povos europeus, foi o foco de toda a conspiração contra a República espanhola. Foi dali que Sanjurjo organizou, preparou e deflagrou, com a mais declarada cumplicidade do salazarismo, a insurreição que deveria destruir a República, que tão generosamente o indultara em 1933, mesmo que para isso fosse necessário destruir a Espanha.

Dois anos antes dos "cruzados" levantarem os seus pendões, em sinal de rebeldia contra aquilo que só deveria surgir em Fevereiro de 1936, já as linhas gerais do plano insurreccional estavam esboçadas e assegurado o apoio de Hitler e Mussolini a tal empresa. Dentro deste plano, que vinha sendo trabalhado por Goicochea junto de Mussolini, desde Maio de 1934, iniciara-se, em Abril de 1935, uma série de conferências entre Sanjurjo, Gil Robles e o contrabandista Juan March, com os grandes capitães da indústria armamentista hitleriana e os mais altos dirigentes do Partido Fascista italiano. Essas conferências, realizadas em Berlim, tinham por objecto a exploração dos recursos minerais de Espanha e do seu protectorado de Marrocos, e prolongaram-se até Janeiro de 1936, mês em que foram assinados os acordos finais. Porém, no mês seguinte, as eleições deram a vitória à democracia espanhola, e um dos primeiros problemas a serem postos em pauta pelo governo era o da nacionalização das minas. Alarmado com esta perspectiva, Hitler convoca Sanjurjo a Berlim, em Maio de 1936. A imprensa de Salazar camufla esta viagem com o pretexto dos Jogos Olímpicos. Terminados os "Jogos", Sanjurjo volta ao QG do Estoril, com os planos completos da insurreição e um subsídio de dois milhões de pesetas para a sua preparação psicológica.

A Guerra de Espanha não foi, portanto, motivada por nenhuma daquelas loas, tão sabiamente difundidas pela propaganda da reacção internacional mas sim porque Hitler tinha necessidade urgente dos minérios espanhóis, e aquela era a única forma de os assegurar. A guerra custou a Espanha dois milhões de mortos e o arrasamento de dois terços do seu território. Mas Hitler conseguira os seus minérios. Quando em Setembro de 1939, ele desencadeou uma das maiores hecatombes da história, já Franco lhe tinha enviado um milhão de toneladas de pirites de ferro, estanho e antimónio. É muito provável que as bombas que arrasaram Coventry e as V-2 que destruíram parcialmente a cidade de Londres, tinham sido fabricadas com pirites da Biscaia ou do Ríff. A Inglaterra só pode agradecê-lo a Chamberlain e a Blum.

Quando o dispositivo militar da revolta estava terminado e feita a sua preparação psicológica pelos pistoleiros falangistas, Franco, que se diz " Caudillo de España por la gracia de Díos ", mas que o foi apenas pela morte acidental de Sanjurjo, parte em avião das Canárias para Tetuán e subleva as forças do Protectorado. No dia seguinte, assegurado o êxito da sublevação em Marrocos, o general Fanjul revolta-se em Madrid, Goded, em Barcelona, Mola, em Burgos, Cabanellas, em Saragoça, Queipo de Llano, em Sevilha. Dos altos chefes militares só o general Miaja, que comanda em Valência se mantém fiel à República.

Imediatamente todo o povo espanhol, como um só homem, se lança, sem armas, a peito descoberto, na luta contra a rebelião militar fascista, O ataque ao quartel de Atarazanas, em Barcelona, onde foi preso Goded, e ao quartel da Montanha, em Madrid, onde foram presos Fanjul e Barrera, são verdadeiras páginas de epopeia. Com as armas apanhadas nos quartéis, nos arsenais e nos conventos, onde os falangistas faziam os seus depósitos de material de guerra, o povo ataca os núcleos rebeldes e, em poucos dias, varre a insurreição na maior parte do território espanhol.

Os meios de que Franco então dispunha para levar a cabo a sua empresa com rapidez, antes que a decisão do povo espanhol acabasse por o esmagar, eram nitidamente insuficientes. O fracasso da revolta em Madrid e Barcelona fora para ela uma derrota moral. Faltava-lhe, para levantar o seu prestígio, uma força de manobra capaz de explorar o êxito inicial da insurreição nas zonas onde triunfara, com as suas guarnições absorvidas em dominar os levantamentos populares. E a perda para ele, de toda acosta levantina, de Barcelona a Cartagena, privando-o dos portos mediterrâneos, tornava difícil e demorada a recepção dos recursos, em homens e material, enviados por Mussolini, e o traslado das Divisões Regulares, que estavam sendo recrutadas em Marrocos.

O salazarismo, porém, salvou-o desses apuros. Logo que se inicia a revolta, Portugal é transformado numa base de abastecimentos e apoio aos rebeldes franquistas. Em torrente, dia e noite, entra em Espanha, pela fronteira de Badajoz, onde a PIDE colabora activamente no assassínio dos republicanos espanhóis, quanto Franco necessita para equipar, municiar, uniformizar e alimentar a sua tropa. O Banco Espírito Santo, de Lisboa, abre, com aval do governo, uma conta ilimitada a favor de Franco, para este fazer face às suas despesas de guerra. Para cúmulo do cinismo, os salazaristas põem nos comboios ferroviários e rodoviários, que transportavam mantimentos para os rebeldes franquistas, o letreiro "Sobras de Portugal". Não sabemos se os comboios, que mais tarde transportavam os "Viriatos" para a frente de Madrid, também levariam o letreiro "Sobras de Portugal". E era lógico que assim sucedesse, porque em Portugal sobravam e sobram mais "Viriatos" que comida. Estes recursos foram, para Franco, de uma enorme valia. Sem eles, não poderia, nessa altura, equipar os reservistas de Andaluzia e Extremadura que convocara ao serviço, formando as Divisões que, enquadradas com a Legião Estrangeira e as Divisões Regulares, constituíram o Exército da Extremadura. Foi a este exército, posto sob o comando do general Varela, que Franco atribuiu a missão principal na tomada de Madrid.

Em princípios de Novembro, sem poderem ser contidas pelas forças governamentais, ainda deficientemente organizadas, que se lhe opuseram em Talavera, as forças do general Varela chegam às portas de Madrid. No dia 5, pela manhã, o presidente da República e o do Governo, dada a gravidade da situação, trasladam-se para Valência, incumbindo o general Miaja, então comandante do Exército do Centro, da defesa da capital. Na tarde desse mesmo dia, recebo em Alcalá de Henares, onde me encontrava nos trabalhos de organização e instrução da 2.ª Brigada Mista, ordem para me apresentar no QG de Miaja, com o fim de me ser confiado o comando do sector avançado de Carabanchel, subúrbio de Madrid, na estrada da Extremadura, eixo de marcha do exército de Varela. À noite, cerca das 20 horas, montei o meu PC na rua General Ricardos, entre Carabanchel Alto e Carabanchel Baixo. Às 22 horas começaram a chegar os efectivos que deviam guarnecer o meu sector. E ao fazer, com o capitão da Companhia para isso designada o reconhecimento para montagem no perímetro exterior de Carabanchel Alto de uma linha de postos de observação, deparo-me com os primeiros elementos da cavalaria moura, que fazia a descoberta do exército de Varela.

Toda a noite, de 5 para 6, o dia 6 e a noite de 6 para 7, que providencialmente o inimigo perdera a organizar o seu dispositivo de ataque, foram utilizados por nós a organizar e a reforçar o nosso dispositivo de defesa. Às 6 horas da manhã do dia 7 dispararam-se os primeiros tiros. Começara a batalha de Madrid, que ficará na história como um exemplo do que podem a vontade e a determinação de um povo.

Não é intenção minha fazer aqui o relato daquela luta que durou três anos e das condições em que o povo espanhol sustentou, porque apenas me propus analisar, embora superficialmente, a intervenção do salazarismo na Guerra de Espanha. Porém, seja-me perdoada a imodéstia de confessar que considero como ponto alto da minha apagada carreira militar o ter comandado, nesses primeiros dias da batalha defensiva de Madrid, homens daquela têmpera.

A derrota, que não foi só sua, mas de todos aqueles que deixaram assassinar a democracia espanhola, não conseguiu abater o espírito desses homens. Em Espanha, os que escaparam com vida lançaram-se em permanente rebeldia, como nos tempos de Numancia, nas montanhas mais agrestes, e fazem até hoje sentir a sua presença em constantes incursões punitivas contra os carrascos franquistas. Em França, logo que se perdeu o controlo sobre os campos de concentração onde apodreciam, correm a organizar os maquis no velho estilo da guerrilla espanhola, que obrigam os hitlerianos a distrair, na ocupação permanente do país, efectivos consideráveis, de que ficaram desfalcadas as suas linhas de defesa do litoral. No Norte de África, logo que o general Leclerc, após uma notável marcha do Fezzan a Tunis, organiza a sua famosa Divisão Blindada, são eles, ainda, que, voluntariamente, constituem a quase totalidade dos seus efectivos. E quando, em seguida ao desembarque na Normandia, esta divisão marcha sobre Paris, na vanguarda das colunas aliadas, é um tanque tripulado por combatentes da Guerra de Espanha, levando pintado a branco o nome de Madrid, o primeiro que entra na capital francesa. É assim o povo espanhol.

Sabe o povo espanhol que o salazarismo, que tão bons serviços prestou a Franco nas suas horas críticas, nada tem a ver com o povo português. Sabe o povo espanhol, tiranizado há vinte anos pelo franquismo, como o povo português, há trinta e três anos, pelo salazarismo, que tal ajuda se repetirá, num sentido ou noutro, sem que ninguém o impeça, porque o espírito internacional de protecção ao fascismo, que hoje reina, é o mesmo que reinava em 1936. Salazarismo e franquismo têm o seu pacto de ajuda mútua, baseado na tirania e opressão. Façamos também nós o nosso pacto de ajuda mútua, baseado na democracia e na liberdade. Unamos a nossa determinação, conjuguemos os nossos esforços, sincronizemos a nossa opção e em breve reinarão de novo a paz e a liberdade entre os povos da nossa velha Península Ibérica.

Rio de Janeiro, Julho de 1959.

Francisco de Oliveira Pio

NOTAS:

1 - Alusão aos cartazes com estes dizeres, passeados pelos estudantes nas ruas do Rio de Janeiro. (N. do Ed.)

2 - V. “Portugal Oprimido”, pelo cap. F. Queiroga, Ed. Germinal.

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Texto retirado de “Guerra de Espanha – Achegas ao redor das Participação Portuguesa – 70 anos depois” de Varela Gomes (Ed. Fim de Século. Lisboa, 2006), com a seguinte introdução do autor:

O texto é da autoria de Francisco de Oliveira Pio, tal como está publicado no opúsculo Duas Palestras sobre o Fascismo Ibérico, editora Germinal, Brasil – Setembro de 1959.

Aí se lê, em nota do editor, que esta palestra (e uma outra, "A Verdade sobre o 28 de Maio") foi proferidas em sessões públicas realizadas na sede da União Nacional dos Estudantes, Rio de Janeiro, em Maio e Junho de 1959, respectivamente.

«Nela usaram da palavra os seguintes oradores: Prof. Serafim Porto, presidente do Centro de Estudos José Oiticica, que abriu os actos; Sérgio Gómez Rodrigues, representante, no Brasil, do Governo Republicano Espanhol no Exílio; Dr. Luís de Abreu Carvalhal, presidente da Associação General Humberto Delgado; Luís Alberto Moniz Bandeira, em nome da Juventude Socialista; Raimundo Eirado e Carlos Matias, pela União Nacional dos Estudantes; comandante Oliveira Pio, heróico defensor de Madrid; Prof. Roberto das Neves, pelo Grupo de Acção Libertária, e general Humberto Delgado, que presidiu.» Diz ainda Roberto das Neves, pois não era outro o editor da Germinal: «Do mesmo autor das duas palestras que constituem a matéria do presente opúsculo, esperamos publicar em breve a narração dos acontecimentos político-sociais em que tomou parte e que constituirão inapreciável fonte histórica para a reconstituição de um dos períodos mais dramáticos da história do mundo.»

Afinal, Roberto das Neves não chegou a publicar as memórias de Oliveira Pio. Por que razão, ou razões, desconhecemos. Oliveira Pio morreu em Maio de 1972 e Roberto das Neves em Setembro de 1981. Nem um, nem outro, voltaram a Portugal, desde que procuraram exílio no Brasil, no início da década de 40. Ao incluirmos no presente volume um texto de Francisco de Oliveira Pio pretendemos não apenas divulgar as opiniões e o testemunho de um dos mais notáveis participantes portugueses da Guerra de Espanha, mas também, simultaneamente, homenagear o patriota antifascista e combatente internacionalista, que morreu desconhecido e cuja memória continua ignorada nesta pátria de alma pequena e ulcerada de má consciência.

Imagem in “DN”