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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

OS OSSOS DO IMPERADOR E DE OUTROS MAIS

25.06.22 | Manuel

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Jorge de Sena:

Dizia ele que deixara a vida

pelo mundo em pedaços repartida.

Há quatrocentos anos que isso foi.

Mas desde então e sempre o que no mundo

se repartiu para não voltar

é o que – a mais que um poeta e dos maiores –

poderia ter sido o povo português.

*

Solúvel e insolúvel este povo.

Na memória dos outros e na sua mesma.

*

Real, sub-real, super-real,

ou – como querem alguns – surrealista?

Que dizer de um povo cujo tempo

se dissolveu no espaço e cujo espaço

não teve nunca tempo para dissolver-se

em tempo?

*

Eterno era só Deus. Os povos não.

E não as línguas e as cidades. Mas

quem vive de alheamento e sobrevive

não é que eterno se ignora morto?

*

Salvador Correia

de Sá e Benevides

libertou o Brasil dos holandeses

e Angola deles pois que sem escravos

o mundo não se açucarava bem.

Um dia regressou a Portugal

à espera de ser visto como herói

(que era). Gastou os fundos dos calções,

as economias, as plumas do chapéu,

e os borzeguins comprados para a Corte,

nas antecâmaras reais e realengas.

E um dia exausto ele já de esperas e delongas,

a Majestade recebeu-o enfim.

O que é que ele queria? O que é que ele pedia?

Ah não pedia nada. Só licença

de voltar ao Brasil. Estava velho

e não havia

em Portugal espaço pra morrer-se.

*

Espaço no Brasil, pobre Correia!

Só reduzido a cinzas centenárias

é que D. Pedro para lá regressa

a pedido de várias famílias.

(Legitimistas riem-se nos túmulos,

e os liberais não choram, que os não há).

*

Está aberta a inscrição para poetas épicos

que celebrem em oitavas a vitória

de Alcácer-Quibir.

(15 mil réis de tença anual para o poeta

não nomeado por velho e demasiado grande).

*

Mas este povo: o povo: esse de séculos

em terra dura e curta vida imerso?

Que sonha ou pensa? Franças e Araganças?

Se lhe tiraram cama em que sonhar!

Se lhe não deram nunca o imaginar

mais que sardinha assada sem esperanças!

Não sonha ou pensa, apenas faz os filhos

que um dia houveram sido o povo se –

um se e sempre se de tantos séculos

e terra dura e curta vida e gente

que está em cima e há outros mais abaixo

danados só de não estarem em cima

do mesmo povo, o tal que todos amam

e lhes faz figas quando voltam costas.

Lisboa, Agosto de 1971.

Nota explicativa do autor:

“São Silvestre e a Língua Portuguesa”, de Dezembro de 1973, foi publicado, sem cortes da censura, no Diário Popular, de Lisboa, em 3 de Janeiro do ano seguinte, a tempo de celebrar o ilustre santo e papa (como do artigo se vê, ele era as três coisas, ou é). Neste conjunto, é sobremodo evidente que a ordenação tinha de começar por este estudo histórico-filológico, fundamental para a compreensão dos substratos mais íntimos da cultura portuguesa. A ele segue-se “Uma Descoberta que Falhou Duas Vezes aos Portugueses: Conta-se da Primeira”, escrito poucos dias antes de ser publicado naquele mesmo “Diário Popular”, em 3° de Agosto de 1973. Naquele tempo, quando, segundo o sentimento geral, as Descobertas Portuguesas estavam oficialmente em moda, como agora, com igual infelicidade, não têm estado, o artigo – histórico à fé da documentação referida –era muito a propósito. E tratando ele de descobertas que não houve ainda que algumas tenha havido, anteriores à Fundação do Jardim da Europa, claro que lhe cumpre vir logo depois do que trata da «silvestre» origem dos nomes dos dias da semana em português, e de outros milagres correlatos. Será perfeitamente consentâneo que, a seguir, se trate de “Os Ossos dos Nossos Monarcas”, que, por lapso meu de cópia saiu sem os “Nossos” no título, ao ser publicado no “Diário de Noticias”, de Lisboa, em 12 de Setembro de 1968, datado do Junho em que havia sido escrito e remetido (maneira discreta de indicar ao leitor que lutas houvera, por parte de Natércia Freire, que dirigia a página literária e me publicava no DN e a muitos outros oposicionistas ora esquecidos de quanto a ela deveram por anos, para que o artigo passasse...). É de notar que o artigo havia sido escrito e remetido imediatamente antes da minha partida dos Estados Unidos para a Europa, e, quando foi publicado, eu deambulava furiosamente pela Europa adiante, tendo chegado a Portugal só em Dezembro desse ano, para ser vitima ou objecto de um «equivoco de fronteira» que será, com a devida minúcia, contado noutra ocasião. Há que apontar que o artigo nada tinha de piada gratuita à veneração pelos monarcas lusos, muitos dos quais me merecem (Filipe II, inclusive) a maior consideração. Muito pelo contrário. Todos os leitores do tempo o entenderam perfeitamente: ele era uma sátira à solene transladação, para o Panteão dos Braganças, em São Vicente de Fora, de D. Miguel I, a que então se procedera, dando satisfação às tendências miguelistas e absolutistas mais que centenárias, mas que foram e ainda são parte do «complexo ideológico» do fascismo português (que, como é sabido, foi mais que nenhum outro um chorrilho de contradições direitistas). D. Miguel não era mencionado nunca, nem era necessário levar mais longe a provocação. Mas há que acrescentar que, quer a gente queira quer não queira, ele reinou “de facto” (reconhecido diplomaticamente, antes de mais, saborosa ironia, pelos Estados Unidos da América e pela Rússia) em Portugal, era um Bragança com direito de asilo no jazigo de família, e, para sermos completamente francos, correspondeu no seu tempo ao sentimento da maioria do povo português, muito mais do que o seu vitorioso e liberal irmão D. Pedro, ambos não só usados pelos políticos, mas exercendo físico e carismático fascínio sobre os seus partidários. Todavia, o trazer-se D. Miguel não era na verdade um acto de justiça prestado aos seus ossos: era uma ostensiva manifestação de esbofetear o liberalismo que o vencera. Por isso o artigo foi escrito (e quiçá, nas divisões que havia dentro de tudo, então como agora, publicado). Curiosamente, e provavelmente por simples lapso da revisão, foi cortado um parágrafo inteiramente inócuo ante o irónico veneno de tudo o mais: aquele que aqui começa «E assim todos os soberanos de Portugal...» e termina «velar pela memória e pelos ossos deles». A “nota final”, última volta do parafuso irónico, era do original e saiu também naquele “D.N.”. Uma vez que esta peça de sólida erudição histórica (uma das minhas frustrações, como será de calcular, é que tanto historiador português de reconhecida idoneidade use dela, sem me citar em nota ou bibliografia) seria necessariamente incluída nesta colectânea, a ela teria de ser «anexado» um poema de 1971, escrito durante uma estada em Portugal, durante a qual o então Presidente da República, Tomás e almirante, convocou o povo a ouvir uma importantíssima comunicação pela TV, e à hora da janta lá estava eu à espera de ouvir que o Prof. Caetano era demitido, ou que ia haver eleições, ou que se assinava a paz em África, ou que Portugal descobrira a bomba atómica. O país ardia de curiosidade. E ele, solenemente, informou o dito povo de que este mesmo povo unanimemente aprovara que, correspondendo à solicitação do Governo Brasileiro oficialmente apresentada pelos canais competentes, Portugal ofereceria ao Brasil os ossos de D. Pedro (o IV que os miguelistas nunca engoliram como rei em Portugal, e o I, que os brasileiros não descansaram enquanto não o correram do Brasil para fora, por muito que ele tivesse gritado aquela «Independência ou Morte» nos campos de Ipiranga nos subúrbios de São Paulo, se não me engano nesta topografia histórica que, no Brasil, só serve para retóricas como aquelas que a gente teve de suportar por décadas em Portugal, e que, diga-se de passagem, me pasmaram quando cheguei ao Brasil em 1959, por muito que de Brasil já soubesse e até lá tivesse estado em rapaz, uma vez que eu pensava que tal patrioteirismo barato era coisa de fascistas e afinal não era, e vejo melhor agora, pelo mundo, que não é, mas arma de todos os grupos dirigentes no seu oportunismo de manobrar as massas). O discurso, acima referido, gaguejado na TV, era de um incrível ridículo, e enquadrava-se, efeito que me causou, na indignação que eu sentia ante o fim da festa (e que era afinal, sem que muita gente soubesse, preparação do festival seguinte), que nojentamente era o exibicionismo de novo-riquismo da sociedade portuguesa. O que tudo deu os violentos poemas que foram publicados numa secção do meu livro “Exorcismos”, 1972, devo dizer que com escândalo de gente de todas as cores, que achou que eu ofendia neles a pátria (neles, quero dizer os poemas e essa gente delicada ou comprometida). Ele, Presidente Tomás, ele mesmo, levaria ao Brasil os ossos, e creio que efectivamente levou. O dar ao Brasil os ossos do seu primeiro Imperador e fundador como nação independente “não era só” uma homenagem ao Brasil: era, sim, o epilogozinho torpe da entrada dos ossos de D. Miguel. Entrava o “legitimo”, e era posto a andar o “traidor brasileiro”. No poema põe-se em contraste como, no século XVII, Salvador Correia de Sá dissera aquela tremenda frase de amargura a D. João IV ou lá quem foi que o ouviu nos Paços da Ribeira, quando afinal ter-se nascido português e viver no Brasil passou a ser um bico de obra, de que não sofrem tanto as outras raças migratórias, ainda que no primeiro impacto, os italianos de São Paulo soubessem que tinham de descer do passeio para a rua (a menos que desejassem arriscar facada dos capangas), quando nele passavam os grandes senhores paulistas e paulistanos (todos de quilométricos apelidos portugueses). Ainda quanto a ossos no Panteão de São Vicente, consta-me que a recentemente falecida Madame Lupescu, longamente amante mundial do Rei Carol da Roménia, ele insigne magnate dos pitróis toda a vida, e ela dele viúva morganática, acaba de dar entrada no dito Panteão brigantino de São Vicente. A que titulo? É isto uma “revolucionária” manifestação de desrespeito pela intimidade familiar dos Braganças, ou homenagem às companhias do petróleo, ou as duas coisas juntas? Porque homenagem à Roménia como país amigo por certo que não é. Fora com a Madama, e haja respeito por uma série de gente que, a comparar com a cabronada que, em tempo deles, governou as Europas, São modelos de inteligência e de virtude, em que pese à propaganda republicana de antes e depois de 1910.

Jorge de Sena, “Reino da estupidez-II”. Moraes Editores, 1978

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