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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Os pecados da Igreja serão perdoados?

21.10.22 | Manuel

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 Ainda nos lembramos das palavras de um bispo, quando os crimes de pedofilia cometidos dentro da Igreja Católica (mas lá fora) começaram a ser mais falados, de que tais crimes não aconteciam em Portugal. Haveria uma barreira sanitária que impedia a entrada do vírus do pecado entre muros nacionais. Quando começaram a surgir, de forma indesmentível, os primeiros casos, e possivelmente por pressão do Papa Francisco, ele por sua vez também obrigado a ter de limpar a casa, as declarações da hierarquia católica indígena passaram a reconhecer a prevaricação, no entanto desconhecendo o número exacto dos casos. Por fim, e com receio ou já notando descontentamento entre os fiéis, a ICAR lá se decidiu a criar uma comissão independente, e “independente” para não ser acusada de querer encobrir o rol dos crimes.

Com o trabalho da comissão quase no fim e depois de se conhecer que os casos de denúncias já iriam nos 424, um número que não diz bem da real dimensão do desmando sexual dos senhores curas, lá também apareceram as figuras do costume a tentar pôr água na fervura, e, como não podia deixar de ser, o papagaio-mor do reino, que opina sobre todas as coisas e nenhumas, afirmando candidamente que o número de 424 casos de pedofilia não seria nada de monta comparado com o de outros países de maioria católica. E já depois de ter posto as mãos no lume pela credibilidade do cardeal patriarca de Lisboa, por ter sido acusado de encobrimento, um crime tão ou mais grave que o da pedofilia. Esta foi a melhor expressão da santa aliança entre a cruz e a espada. Nada de motivo para a admiração do reviralho na medida em que o historial desta aliança vem antes da fundação da dita “nacionalidade portuguesa”. Dom Afonso Henriques, o primeiro proprietário da quinta, era franco e derrotou e expulsou os infiéis com a ajuda prestimosa e indispensável dos cruzados, católicos e seguidores do Papa.

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A santa aliança entre a cruz e a espada antes do 25 de Abril revestia forma mais pessoalizada, eram inúmeras as anedotas que se contavam sobre a amizade entre as duas figuras supremas do poder, religioso e temporal. No entanto, a Igreja fazia o trabalho de mentalização das massas, nomeadamente rurais, que interessava ao regime fascista português, mas parece que agora os papéis se inverteram.

Diversos altos dignatários da Igreja (ICAR) têm sido questionados sobre o escândalo e, principalmente, sobre o eventual encobrimento da pedofilia dentro da Igreja. Alguns vão conseguindo descalçar, mas mal, a bota e limpar a imagem pessoal e da confraria; um deles, o bispo Ornelas, depois de ter sido avisado pelo PR Marcelo de que estava a ser investigado pela Justiça, tem-se desunhado em entrevistas pelos media mainstream, com relevo para a pública RTP, em defesa da honra e do bom nome. No entanto, outros, por menos inteligentes ou menos diplomáticos, não conseguem esconder a verdadeira alma de arrogância clerical, pensando talvez que ainda se encontram no bom e saudoso tempo da Inquisição, do estado religioso que se sobrepunha ao poder temporal. O bispo do Porto, cujo nome é o antónimo de o ser, de cada vez que abre a boca mais se enterra na contradição de uma instituição que vive fora do tempo; ilusão esta que é alimentada por incompreensíveis e anacrónicos privilégios concedidos pelo poder político de um estado que constitucionalmente se declara laico. A arrogância e o poder da ICAR estão na razão directa do oportunismo e pusilanimidade da classe política nacional e que, à vez, vai gerindo os negócios da elite económica reinante.

A arrogância e algum sentimento de impunidade de quem está acima da plebe faz com que o bispo Linda venha a ficar na história da pedofilia em Portugal por tiradas pouco lindas, do género "O crime de abuso não é público", ou, então, as amnésias selectivas de não se recordar “minimamente” de ter recebido queixa por abuso sexual envolvendo padre e uma menor. A acompanhar, o clérigo Ornelas, usando a abstração do termo “igreja”, não se inibe de afirmar que a “igreja tem casos de pedofilia, mas não é pedófila” – o que será uma “igreja pedófila”? No topo da hierarquia, o Vaticano promete trabalhar “em momento oportuno” com Igreja Portuguesa sobre abusos. Qual será o resultado deste trabalho ainda não sabemos, mas em relação à Justiça portuguesa não será difícil prognosticar porque neste momento o MP já arquivou mais de metade dos inquéritos. Como a grande maioria dos abusos sexuais foi praticada há muito tempo, tendo já prescrito, pouco ou nenhuns irão sequer a julgamento.

Perante a suspeição e a acusação, agora, é a vez de o clero apresentar-se como vítima, atitude que se observa em muitos católicos mais obedientes basta passar os olhos pelas redes sociais. É a "perseguição à Igreja", é a condescendência de que em todas as instituições ou grupos sociais há sempre as ovelhas negras, que em altura certa serão expulsas, ficando a instituição ainda mais pura e verdadeira. Só que a decadência e a evidência de “os valores que estão a voar" são incontornáveis. Mas enquanto os valores morais e espirituais vão decaindo ou adulterando os interesses materiais estão sempre presentes: “Clero do Porto vai investir sete milhões numa hospedaria. Espaço vai ter 55 quartos e será aberto a todos os turistas que queiram usufruir” (é a manchete dos media). A celebração da “segunda peregrinação do ano” a Fátima pela participação e pelo (des)ânimo em que decorreu não conseguiu esconder a realidade presente da ICAR.

A decadência de valores não é de agora, e referimo-nos à Igreja católica portuguesa, lembremo-nos do caso do bispo do Funchal que ordenou padre o secretário, pedófilo e, ao que parece, amante, e o fez sair da prisão, onde se encontrava por presumível crime de homicídio e com contornos de envolvimento sexual – ninguém se esqueceu do padre Frederico que fugiu à Justiça em 1998! Lá vai o tempo em que os padres eram acusados de poligamia e de terem filhos que mais tarde rejeitavam, recorrendo muitas vezes ao infanticídio. Refere Alexandre Herculano: «Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo». E mais adiante o nosso historiador não se cansa de apontar: «Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas.» Parece que agora os tempos são outros.

São os tempos da pedofilia, das parafilias resultantes da ancestral e persistente repressão da sexualidade humana por parte da ICAR e ao longo de muitos séculos da sua existência. A pedofilia tem um significado preciso, segundo o psiquiatra Afonso Albuquerque “Na perspectiva sexológica, o pedófilo é um adulto (geralmente um homem) cujo interesse sexual por crianças pré-púberes (até aos 13 anos) excede claramente o seu interesse sexual pelos adultos. Alguma especificidade extra vem sugerida nos sistemas classificativos mais actuais (DSM -IV, CID-10), como a idade de pelo menos 16 anos para o perpetrador e a da vítima ter até 13 anos, e ser pelo menos cinco anos mais nova, de forma a excluir os casos de atracção sexual entre crianças e adolescentes com idades equivalentes”. E como tal deve ser objecto de tratamento clínico, o que não apaga, como é óbvio, a responsabilidade criminal do abusador e da própria instituição que criou condições para tal e não soube tomar medidas em tempo útil.

Embora não parafilia, tanto a homossexualidade como a masturbação têm sido abertamente reprimidos como pecados. Há quem veja esta repressão clerical e religiosa como a repressão de uma “sobrevivência pagã” - como é ainda considerada cristianamente a sexualidade humana - a expressão de uma «psique neurótica» e de «uma psicologia dos grupos conduzindo à neurose». A atitude de sempre da Igreja católica, e reiterada em 1975 pela Sagrada Congregação da Fé quanto a questões de sexo e de castidade, é interpretada numa perspectiva psicanalítica por um dos seus últimos elementos proscritos, o teólogo e psiquiatra alemão Eugene Drewermann, que vê como resultado no indivíduo (homem da igreja ou crente) desta política medieval «o menosprezo do ego, a “mortificação” da pulsão sexual e a submissão do indivíduo ao grupo (leia-se hierarquia)».

O mesmo autor reconhece, fruto da sua experiência de psicoterapeuta, que a percentagem de homossexuais dentro da Igreja católica é grande, como consequência principal da sua moral repressiva e da atitude quanto ao celibato, quer entre religiosos de sexo masculino como do sexo feminino, chegando aos 25% os jovens seminaristas que, de forma permanente ou esporádica, se dedicam a práticas homossexuais. A homossexualidade considerada como uma das formas mais graves de pecado pela Igreja (os acusados pelo crime nefando eram sentenciados à fogueira pela Santa Inquisição, se fosse agora muito haveria que queimar!) é por esta directamente fomentada, mas que, ao mesmo tempo (contradição das contradições), obstinadamente se recusa a reconhecer como realidade existente no seu seio.

Quanto a práticas masturbatórias, elas são frequentes, segundo Drewermann, são diversos os casos, por si vistos na clínica, de eclesiásticos, alguns ocupando altos cargos hierárquicos, que, perante as dificuldades de preparação de uma conferência ou homília, começavam sempre por se masturbar. Masturbação, considerada pela Teologia católica como “um acto gravemente oposto à ordem”, ou então a procura do álcool, outro refúgio bastante solicitado e que, quer um quer outro, funcionam como droga para vencer o medo e a insegurança.

E entre os padres que decidem abandonar o caminho do onanismo para se ligar a alguma mulher, respondendo assim aos apelos mais íntimos do seu ser, confrontam-se as mais das vezes com o problema dos filhos não desejados, sendo, por isso, e segundo aquele teólogo alemão, os abortos coisa frequente: é que o “concubinato” é tolerado desde que o sacerdote em causa não persista ou “não dê escândalo” (cânone 1395 do Direito Canónico), isto é, que não haja conhecimento do “pecado”.

Esta realidade não é de estranhar numa religião, e continuamos a citar as palavras de Drewermann (que apesar de tudo não renega a sua fé), que «falsifica a neurose em santidade, a doença em eleição divina e a angústia em confiança em Deus», e onde a separação entre o pensamento e a sensibilidade, a actividade intelectual e a vivência emocional, constitui uma estrutura fundamental do pensamento clerical. Esta hipocrisia, a mesma que a burguesia manifesta, mas mais refinada e levada ao extremo, é própria de uma religião que «é inimiga da natureza e oposta ao amor», melhor dizendo, tem como objectivo a subjugação do homem, a sua destruição como indivíduo livre e senhor do seu destino.

Por fim, haverá que fazer uma distinção entre “pedófilo” e “adulto abusador sexual de crianças”, que é melhor descrito como «qualquer adulto que tenha contactos sexuais com crianças pré-púberes», segundo Afonso de Albuquerque. E continuando, este «qualquer adulto» vai incluir pedófilos e não pedófilos, ou seja, há adultos que abusam sexualmente de crianças mas não o fazem porque sejam pedófilos mas sim por uma variedade de outros motivos (por exemplo, os violadores). Estas duas populações (pedófilos e abusadores sexuais de crianças) são em parte coincidentes. Talvez tenha sido esta a realidade dos abusadores envolvidos no caso mais que mediático da Casa Pia e que abriu o capítulo de um dos maiores escândalos da democracia portuguesa saída do 25 de Abril de 74, onde estavam envolvidas figuras importantes da sociedade, do futebol, do espectáculo e da política. Quase que o espelho de um certo Portugal bem instalado na vida.

Observando com mais atenção constata-se que os problemas da Igreja Católica são, embora com algum grau de ampliação pelas características específicas, os mesmos da sociedade em geral. Numa sociedade patriarcal, onde predominam conceitos racistas, xenófobos e machistas, os pecados são os mesmo de uma igreja, também ela, patriarcal, e, por acréscimo, celibatária e gerontocrática. No global, é a sociedade burguesa e capitalista que se encontra em decadência, porque a superestrutura não se pode desligar da base económica, andam quanto muito e às vezes desfasadas no tempo.

Bibliografia:

- Afonso de Albuquerque, Minorias Eróticas e Agressões Sexuais. Publicações Dom Quixote, 2006.

- Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Edição Círculo de Leitores, 1987.

- Eugen Drewermann, Funcionários de Deus. Editorial Inquérito, 1989.