PIDE: Métodos de tortura utilizados
I1 - As cisternas do Fortaleza de Peniche onde os presos deixaram inscrições até 1966 (Foto in "Dossier P.I.D.E. - Os Horrores e Crimes de uma Polícia". Ed. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa. 1974)
O presente capítulo baseia-se em extractos de depoimentos de ex-presos políticos antifascistas. Não pretende de modo nenhum ser exaustivo e refere-se apenas a acontecimentos recentes, dos últimos anos do regime. Dá no entanto uma ideia clara dos métodos utilizados pela criminosa organização; particularmente no que se refere à "tortura do sono", (usada contra todos os presos), há que ter em conta os seus efeitos imediatos – alucinações, perturbações cardiovasculares, como também o seu efeito a longo prazo sobre a saúde do torturado. Nesta tortura participavam todos os agentes que estavam de serviço na sede e delegações da PIDE. Para isso havia um burocrático serviço de escala com a duração de 4 horas, a que os pides chamavam "turnos".
Antes do interrogatório:
- PRISÃO: Podia ser de madrugada, em qualquer local, geralmente sem mandato de prisão ou de busca, acompanhada da recusa em informar o preso da acusação.
"Tinham-nos ido buscar às 7 horas da manhã, tendo aparecido sem mandato de captura e agredindo desde de logo o meu marido violentamente”. (1)
2- BUSCA: Era feita por uma equipa especializada em buscas, constituída por um chefe de brigada e 3 agentes. A busca era geralmente muito minuciosa: livros, recortes, postais, fotos, cartas, candeeiros, louças, autoclismos, caixas, cadernos, discos, etc. Mesmo nesta fase era vulgar que os pides não dissessem que a pessoa estava presa ou ia para a prisão.
"Estiveram todo o dia em minha casa rasgando cartazes, roubando, recolhendo livros. Obrigaram-me a estar virada para a parede para não ver o que apanhavam, e esse truque teve ligação com o facto de me apresentarem em interrogatório papéis que não tinham apanhado em minha casa; eu ouvi-os dizer que não tinham apanhado nada. Eram muitos e deixaram a minha casa com as portas arrombadas. Não sei quanto tempo lá ficaram mas apreenderam cartas, cartazes, postais, mais de 500 livros e mesmo discos ”. (1)
3 - CHEGADA À PRISÃO: Podia ou não haver passagem pela sede da PIDE; depois o preso era levado para Caxias; geralmente num carro vulgar, acompanhado por 2 ou 3 agentes. A chegada a Caxias era normalmente seguida de um processo que tendia à "despersonalização". Os seus aspectos principais eram:
- a identificação (fotografia e impressões digitais) ,
- corte de cabelo, barba ou bigode,
- apreensão de alguns objectos pessoais, particularmente, os óculos, relógio, atacadores e algumas roupas.
"Fui preso sem mandato de captura, às 8 horas da manhã, sendo depois levado para a Rua António Maria Cardoso, onde fui despojado de tudo que levava comigo, indo depois para Caxias”. (1)
"Fui conduzido para a António Maria Cardoso com uma toalha a servir de venda nos olhos. Lá fui seviciado por um agente que disse ter oito anos de guerra no Ultramar e que contra ele não se voltavam”. (1)
4- PERIODO DE ISOLAMENTO: O preso era colocado numa cela sozinho ou em certos casos, tinha um companheiro temporário que podia ou não ser "bufo". Tudo era manipulado pela PIDE com o fim de privar o preso de todo o contacto social e sensorial. Assim:
- a) celas - pequenas, com casa de banho, paredes nuas, mesa, cadeira e cama;
- b) refeições - eram de sofrível qualidade, dadas à porta a fim de evitar o contacto com o carcereiro. Para além do carcereiro que trazia as três refeições, o preso só via um agente da PIDE que a qualquer hora entrava na cela e, normalmente sem falar, fazia uma busca e saía rapidamente";
- c) proibição de livros, revistas e correspondência - ao preso era unicamente dado papel e lápis e era-lhe expressamente dito que "só poderia escrever ao Sr. Director";
- d) proibição de visitas.
"Deixaram-me em Caxias numa cela de isolamento só com a roupa do corpo, sem caneta nem papel para escrever à família. A custo me deram uma toalha e papel higiénico. Recusaram-me o dinheiro. Estive 5 dias assim, sem nada para fazer, sem ninguém para falar, sem poder escrever à família. Depois, duas vezes me vieram buscar e voltavam a trazer-me para a cela sem me fazerem nada, só para me enervarem”. (1)
Durante o período de isolamento as reacções psicológicas seguiam, geralmente as seguintes fases:
- fase de agitação, impaciência, agressividade;
- fase de inércia, descuido com a higiene pessoal, passividade e quebra das defesas físicas.
INTERROGATÓRIO:
1- CARACTERÍSTICAS: Era feito num centro especial para interrogatórios a cerca de 200 metros a sul do bloco da prisão, sendo o transporte em carrinha prisional, com motorista e um agente, ambos à frente (2) . Iniciava-se geralmente uma ou duas horas depois do preso estar a dormir. A sua duração era imprevisível, podendo levar de algumas horas a vários dias, geralmente com interrupções de mais do que um dia que, em muitos casos, precediam a visita.
Antes e durante o interrogatório as visitas do médico tinham como função assegurar primeiramente aos torturadores que o preso tinha condições de saúde que permitiam a tortura e por outro lado tratar o preso quando a sessão fosse longe de mais ou pudesse deixar traços que não conviessem à polícia.
"Depois do 5° dia foram buscar-me quando já estava deitada às 22 horas e estive dois dias, até às 24 horas do 7° dia sem dormir. Estava menstruada e nem algodão me quiseram dar. Ameaçavam-me e tentavam outros tornar-se meus amigos. A minha família soube de mim e ao fim de dois dias mandaram-me dormir para ter visita no dia seguinte”. (1)
"Uma noite vieram buscar-me para interrogatórios. Desta vez estive nas mãos dos pides 8 dias sem dormir, dois deles sem cadeira. Ao cabo destes 8 dias desistiram e levaram-me para Caxias. Durante estes 8 dias os interrogatórios eram feitos a variadíssimas horas, de preferência à noite. No decorrer dos interrogatórios as ameaças, intimidações e provocações foram frequentes”. (1)
2- MÉTODOS USADOS: Ultimamente a PIDE vinha-se especializando em técnicas de tortura psicológica sem no entanto ter abandonado a tortura física. Qual a razão deste especialização? No fundamental eram duas as razões:
- por um lado, não deixava traços visíveis e portanto era mais fácil enganar a opinião pública nacional e internacional;
- por outro lado, a influência crescente da polícia e métodos americanos no treino da PIDE, o que levou à "cientificação" da tortura, particularmente pela aplicação ao interrogatório dos conhecimentos adquiridos em cerca de 20 anos de investigação em Psicologia Experimental sobre "privação sensorial" feita, na sua maior parte, em Universidades norte-americanas e muitas vezes subsidiada pelo Ministério da Defesa dos EUA.
Estas técnicas não eram sempre utilizadas da mesma maneira: existiam várias combinações possíveis. Além disso, os torturadores eram suficientemente flexíveis para usar técnicas diferentes conforme as circunstâncias de cada caso individual. Para isso os pides jogavam com os seguintes elementos:
- a) filiação partidária;
- b) preso intelectual ou trabalhador;
- c) acontecimentos da história pessoal que pudessem ser utilizados contra o preso;
- d) situação dos familiares;
- e) possibilidade de chantagem económica, etc.
Existiam no entanto técnicas que pela frequência e pelos efeitos que provocavam, merecem ser mencionadas:
- Estátua: de pé, por vezes voltado para a parede sem a tocar e de braços abertos.
"Sofri 3 noites e 4 dias seguidos de estátua com períodos de espancamento pelo agente Santos Costa. Quando já não me podia manter de pé com as pernas inchadas, deram-me uma cadeira e fiquei mais dois dias em tortura de sono”. (1)
"Em seguida obrigaram-me a permanecer de pé 3 dias e noites consecutivas e como me tivesse recusado a comer enquanto fosse torturado, quiseram-me introduzir um tubo no estômago para alimentação" (1).
"Estive em tortura de estátua por tempo que sou incapaz de determinar, embora julgue que não foi por muito tempo; provocou-me grande inchaço nos pés e dilatação das veias por todo o corpo. Um dos sapatos rebentou”. (1)
"Fui forçado a permanecer dois dias consecutivos de pé pelo agente Magalhães da Silva precisamente no momento em que os pés, devido ao inchaço, já não cabiam nos sapatos e as mãos já não podiam permanecer em posição normal”. (1)
- Privação do sono: o preso era impedido de dormir durante vários dias consecutivos. Para isso bastava, por exemplo, o bater duma moeda na mesa, ou então a agressão física quando o preso fechava os olhos.
"Estive 22 dias em tortura de sono sendo distribuídos por 4, 13, 1, 2, 1. No período dos 13 dias deixaram-me dormir à 5ª noite na própria sala do interrogatório. Esta tortura provocou-me alucinações”. (1)
"Durante os 67 dias que permaneci em isolamento fui sujeito à tortura pela privação total do sono durante 12 dias em dois períodos: o primeiro de 4 e o segundo de 8 dias consecutivos. Durante os períodos de tortura de sono, fui sujeito ainda a outros tipos de violência tais como: duas sessões de brutal espancamento a soco, pontapé, golpe de cutelo e ainda batendo com a cabeça nas paredes, ambas efectuadas pelos agentes Inácio Afonso e Magalhães da Silva”. (1)
"Estive na tortura do sono de 30/1 a 6/2 e novamente de 8/2 a 14/2. Não sei os nomes dos pides que se revezavam em turnos para me impedir de dormir, mas poderei identificá-los pessoalmente, pelo menos a 4 ou 5 deles. Estes pides espancavam-me à bofetada, a pontapé e uma vez com cassetete. O inspector Mortágua deu-me uma forte sova de soco e pontapé, bastante demorada no 3º ou 4° dia de sono" (1).
"Comecei nessa noite, após um interrogatório, a tortura de sono que duraria 8 dias e 8 noites. Durante este período, fui interrogada pelo inspector Mortágua, pelo agente Inácio Afonso, pelo inspector Óscar Piçarra Cardoso e um outro agente que assistia mas de quem não sei o nome. Durante a tortura do sono, as agentes que me vigiavam para que eu não dormisse chamavam-se: Alzira, que sendo dactilógrafa fazia aquele serviço à noite como biscate; Leontina, e uma tal de Teresa Leite, de Braga, mas moradora na calçada do Carmo, em Lisboa. Esta mulher, "autêntico protótipo de agente da Gestapo: numa noite de interrogatório dei-me vários socos na testa onde partiu a corrente de metal do seu relógio, atingindo-me na vista que, durante mais de 8 dias, ficou negra e a doer-me imenso”. (1)
-Ameaças pessoais ou familiares: “ Durante os interrogatórios, era principalmente o inspector Óscar Cardoso que me pressionava mais, falando-me dos meus filhos, do que sofreriam com a minha ausência, etc., e também dos restantes familiares que estavam presos 'por minha causa'”. (1)
"O Abílio Pires era o mais sádico: dizia que me podiam levar para a Guiné (eu estava mobilizado) e matavam-me lá, sendo assim mais um 'morto em combate'”. (1)
“... E ainda às habituais ameaças de morte ou de loucura, de prisão de familiares e amigos, de fazerem passar a minha mulher pelas mãos de todos os chefes de brigada, além das habituais cenas de insultos da mais baixa espécie”. (1)
"O chefe de brigada Inácio Afonso socou-me por duas ou três vezes com extrema violência, fez um simulacro de fuzilamento, encostando-me uma pistola à cabeça e ameaçou-me com uma faca de mato gabando-se de que me ia por os intestinos à mostra ‘como fiz aos 'turras' em Angola' (palavras dele) ”. (1)
I2 - Os estranhos buracos do inferno da Fortaleza de Peniche (Foto in "Dossier P.I.D.E. - Os Horrores e Crimes de uma Polícia". Ed. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa. 1974)
TORTURA FÍSICA:
-Maus tratos em geral: por exemplo: queimar a carne com pontas de cigarros, pontapés, obrigar a defecar ou a urinar de pé, ou no caso das mulheres, na frente dos torturadores com ameaças de violação.
"No 8° dia do sono, em virtude das alucinações auditivas comecei a gritar. Entraram na sala dois agentes que tentaram manietar-me. Como reagisse, esbofetearam-me, insultaram-me, conseguindo rachar-me um lábio, que também ficou negro. Nessa altura fui amordaçada com um adesivo largo e uma toalha turca dobrada, e agarrada pelos braços. Estive assim um espaço de tempo mas não posso precisar quanto. Tanto a Leontina como o inspector Mortágua ameaçavam-me de me por o outro olho igual ao que estava negro. Mortágua ameaçava-me muita vez de me bater, e de me deixar ali até eu dar em doida. No que era acompanhado pelos outros agentes”. (1)
“O pide chegou ao ponto de me provocar queimaduras na orelha esquerda com um fósforo”. (1)
"Fui espancado pelo Santos Costa, enquanto 4 agentes me seguravam e o inspector Rodrigues Martins me cravava as unhas nas orelhas provocando sangue. Também me queimaram os dedos com um isqueiro”. (1)
"No 2° dia entrou na sala o Santos Costa e, sem me fazer qualquer pergunta, puxa por um chicote e espanca-me com raiva, gritando e acompanhando isto de joelhadas nas minhas pernas; as dores eram horríveis doíam muito mais do que o chicote, porque eram dadas mesmo no músculo e deixavam grandes manchas negras. Durante a noite entrou um pide aos gritos chamando-me nomes e dizendo que eu tinha de falar senão rebentava comigo. De braço dado comigo começou a andar à volta da sala dizendo-me para eu gritar com ele e como eu não gritava dava-me cotoveladas no estômago ou no peito que me faziam dobrar; andou nisto um bocado até eu ficar tonto e com fortes dores no peito, e depois abandonou-me a rir e gozou o espectáculo de me ver naquele estado”. (1)
“… Foram 4 agentes que me espancaram, eu caí e então choveram pontapés nas costas e murros na cara. Deixaram-me a cara toda negra, sentia dores nas pernas e nas costas. Recordo-me também que sangrava da boca e do nariz”. (1)
-Uso de altifalantes: gravações de vozes, gritos e choros, que eram colocados em salas vizinhas e transmitidos para a sala de tortura para que o preso ficasse com a convicção de que amigos ou familiares seus estavam a ser torturados.
"Os gritos que ouvia eram gritos de pessoas a serem torturadas e eram outro género de tortura que me faziam sentir pequenino no meio de tanto horror. Tenho a dizer que esses gritos eram verdadeiros; tratava-se de uma gravação e o som era emitido por dois altifalantes disfarçadamente colocados em duas paredes da sala; os gritos eram sempre os mesmos e por isso só me causaram efeito ao princípio, depois só o barulho incomodava ”. (1)
Estas torturas provocavam entre outros os seguintes efeitos:
- a) Desorientação – o preso não era capaz de saber há quanto tempo se encontrava em interrogatório.
- b) Perturbação da concentração com falhas de memória e dificuldade em prestar atenção.
- c) Alucinações – era de longe o efeito mais perigoso. Os torturadores apercebiam-se rapidamente de que o preso tinha chegado ao período de alucinações pelo seu comportamento, e era frequente que tentassem aumentar as alucinações com sugestões e ameaças.
Eram frequentes as alucinações auditivas, como por exemplo, ouvir vozes de pessoas conhecidas, sons estranhos, etc.
"Deixaram-me junto a uma das tomadas de electricidade e então comecei a falar com pessoas amigas contando o que me tinham feito. Recordo-me perfeitamente que ouvia as pessoas a responderem-me. Apesar da violência dos espancamentos dessa noite, a verdade é que passei o resto do dia menos mal, passei-o a falar para a ficha que eu tinha arrancado da parede; falava com pessoas amigas mas tinha a consciência do sítio onde estava”. (1)
As alucinações mais frequentes eram as visuais, como por exemplo, ver as paredes a moverem-se ou animais que se mexiam no chão ou nas paredes.
"Na noite de 23 para 24 comecei a ver muitas coisas na sala: via bichos enormes, no plástico da porta de entrada. Via aí coisas horríveis, entre elas via-me entre grades com a cara disforme, outras vezes via pessoas muito amigas: andei a noite toda a passear na sala e de vez em quando um bichinho que eu nunca cheguei a ver saltava-ma para as costas e cravava-me as unhas; então lançava-me contra a parede esfregando-me na parede e o bicho fugia escondendo-se não sei onde. Recordo-me que algumas vezes via as unhas do referido bicho, eram muitas unhas, o bicho estava agarrado ao pé da mesa mas do lado contrário ao meu e por isso só lhe via as unhas vincadas ao pé da mesa; nunca cheguei a perceber que espécie de bicho seria. Sabia que tudo isto eram alucinações causadas pelos dias sem dormir mas a verdade é que tudo isto me incomodava; passei muito tempo a correr com o bicho, porque as suas unhas me doíam”. (1)
Notas:
(1) - Extractos de depoimentos prestados por ex-presos sujeitos a torturas pela PIDE.
(2) - Isto a partir de 1971, pois, até aí, funcionavam no terceiro andar da Rua António Maria Cardoso.
Documentos:
“A PIDE, a sua Organização e seus Quadros” – Tribunal Cívico Humberto Delgado
“Elementos para a História da PIDE – Para o Tribunal que Julgue a PIDE” – AEPPA (Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas)