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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Poesias eróticas – Burlescas & Satíricas

15.09.22 | Manuel

Bocage.jpg

M.M. Barbosa du Bocage

I

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de face, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:
 
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas, e frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento

II

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
 
«Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro».

III

Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:
 
Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de neve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

IV

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que ainda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa:
Que isto de virgo e honra é tudo peta.

V

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lombrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como o zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro, tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um u;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

VI

Bojudo fradalhão de larga venta,
Abismo imundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na ciência burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta:

No púlpito um domingo se apresenta;
Prega nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o gran sussurro
O dique das asneiras arrebenta.

Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas
Um pecador dos mais desaforados:

«Não (diz uma) tu, padre, não me engodas:
Sempre me há-de lembrar por meus pecados
A noite, em que me deste nove fodas!»

Poemas retirados de “Poesias eróticas – Burlescas & Satíricas” de M. M. Barbosa du Bocage. Orfeu, 1985 (livro cuja publicidade na RTP foi proibida pelo governo de Cavaco Silva)

Notas escritas em 2005, Ano do Bocage:

Em 15 de Setembro de 1765, nasceu em Setúbal uma criança que havia de ser Bocage. Filho de José Luís Soares de Barbosa, antigo magistrado, e de Mariana Joaquina Lestof du Bocage, de origem francesa. Governava o marquês de Pombal a monarquia de D. José I.

Em 1780 seu pai introduziu-o na vida activa, cingindo-lhe a espada de cadete do regimento de Setúbal. Em vez das letras foram as armas. Aos 16 anos passava Bocage do exército para a armada, com o posto de guarda-marinha. Foi então que veio residir em Lisboa e foi pela primeira vez que apareceu o triunfador como poeta.

Aos 20 anos parte para a Índia, com o posto de tenente, datam desta viagem os versos em que primeiro se retomou aos céus da grande inspiração o lirismo bocagiano.

Por 1790, de novo em Lisboa, e de novo a boémia e os botequins, a hospedagem por casas de amigos e jantares a troco de ditirambos e sonetos laudatórios. Convidado para a Nova Arcádia, manifesta-se o génio tempestuoso. A impiedade de alguns dos seus versos atraiu sobre o rigor da Inquisição, valendo-lhe um breve encarceramento nas masmorras; cinquenta anos antes, teria como destino a fogueira.

O entusiasmo é a sua feição predominante. Ao toque da sua fantasia tudo para ele se transforma em ode, lírica arrebatada; é uma ode a sátira, torrentuosa e veemente; é uma ode o idílio; uma ode a elegia… O ardor do pensamento comunica-se-lhe ao verso que ninguém fez mais sonoro, à frase que ninguém teve mais pura e mais nobre.

Ainda teve em 1802 que sofrer perseguições do Santo Ofício, suspensas logo pelos poderosos protectores. A 21 de Dezembro de 1805, contando apenas 40 anos de idade, faleceu na casa em que morava na Travessa André Valente, no meio da geral consternação de Lisboa.

2005 é o Ano de Bocage. Duzentos anos após a sua morte, Bocage é esquecido por organismos públicos, pelos mentores e opinion makers do regime democrático de Abril, tal como ao tempo do fascismo. Bocage continua a ser o poeta de fora do establishment, quase o poeta maldito.

Em 1985, aquando da edição pela primeira vez da sua poesia satírica e erótica depois de 25 de Abril, a RTP (estação de televisão oficial, e única na altura) proibiu a sua publicidade, retomando a velha tradição do lápis azul da censura salazarista (estávamos no início do cavaquismo). Em 2005, esta é a melhor contribuição para que seja conhecida parte da poesia menos divulgada de Bocage.

Editado em “Os Bárbaros”, 2005