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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Quando em Portugal a Igreja Católica praticava o "infanticídio em larga cópia"

24.05.22 | Manuel

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“História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”

«Se acreditarmos D. João III ou os que falavam em seu nome, a imoralidade pululava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular, que ele tanto favorecia. Os eclesiásticos, por exemplo, na vasta diocese de Braga eram um tipo acabado de dissolução. Os párocos abandonavam as suas igrejas, e o povo não recebia a necessária educação religiosa, faltando castigo para tantos desconcertos. Os mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se entre eles o de Longovares, da Ordem de Santo Agostinho, e os de Seiça e Tarouca, da Ordem de Cister, ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia; porque em todos eles os abusos eram intoleráveis. Os abades, que, segundo a regra, ocupavam o cargo vitaliciamente, faziam recordar no seu modo de viver os devassos barões da Idade Média. A opulência manifestavam-na em custosas e nédias cavalgaduras, em aves e cães de caça e numa numerosa clientela, completando alguns essa existência de luxo com mancebas e filhos, que mantinham à custa do mosteiro. Viviam os monges pelo mesmo estilo, na crápula e na bruteza, servindo muitas vezes como criados do abade, de modo que, na opinião de el-rei, não havia na Ordem de Cister senão ignorantes e devassos. Os conventos de freiras não se achavam em melhor estado, sendo o de Chelas, o de Semide e outros teatros de contínuos escândalos. A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Filipa de Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época.

Lorvão contava então cento e setenta freiras, entre professas, noviças e conversas. A família de Eça preponderava ali. Dela eram tiradas sempre, havia sessenta anos, as abadessas, e outros tantos havia que a dissolução era completa em Lorvão. Das freiras então actuais uma parte nascera no mosteiro. Suas mães não só não se envergonhavam de as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do sexo masculino. D. Filipa era uma dessas bastardas, fiel às tradições maternas. Andava ausente quando faleceu D. Margarida de Eça, a última abadessa. Aquelas que tinham vivido em verdes anos com D. Filipa e que contavam com a sua indulgência chamaram-na e elegeram-na sucessora de D. Margarida, estando esta moribunda. Queria el-rei substituir a nova prelada por uma freira de Arouca; mas opôs-se a parcialidade da eleita. Seguiu-se uma longa demanda em Portugal e em Roma, demanda cheia de estranhas peripécias. Entre estas a mais singular foi o serem certa vez encontradas D. Filipa e outra freira em casa de um clérigo de Coimbra, escondidas com a sua amante ordinária, que a justiça buscava. A pena recusa-se a descrever o estado em que todas três foram achadas. Tais eram as devassidões e os escândalos de que vamos encontrar memória nos mais insuspeitos documentos.

Mas se estes nos revelam o estado, não só do clero hierárquico, mas também do monaquismo português, as considerações oferecidas por Frei Francisco da Conceição aos padres de Trento têm um carácter de generalidade que abrange todas as classes, e descobrem úlceras de diverso género, porém não menos asquerosas. Os bispos, com raríssimas excepções, nunca residiam nas suas dioceses, contentando-se com enviar para lá vigários-gerais, cargo em que, por via de regra, eram providos aqueles que mais barato o faziam, embora dele fossem indignos. Os bispos do ultramar nem sequer curavam de semelhante formalidade, e essas regiões, mais ou menos remotas, estavam completamente privadas de pastores. Segundo afirmava o bom do carmelita, as superstições mulheris, sobretudo nos conventos e nas casas de fidalgas, eram monstruosas, além de outras relativas ao culto público a que já anteriormente aludimos. O sigilismo tinha-se introduzido em larga escala. Com o pretexto de ser para fins honestos e com permissão dos penitentes, os confessores revelavam os segredos da confissão. Os abusos e misérias que se passavam nos púlpitos eram quotidianos. Pregadores, havia-os em nome, mas eram raros, na verdadeira acepção do termo, e esses poucos tratados com desdém. O comum deles o que buscavam eram honras e dinheiro, lisonjeando as paixões do auditório.

O povo ignorava a religião, porque os oradores sagrados só curavam de vãs subtilezas. Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo. Aumentava-se desmesuradamente esse escândalo com o número prodigioso e com a imoralidade daqueles que só pertenciam ao clero por terem tomado ordens menores. Muitos tratavam de receber esse grau só para se exemptarem da jurisdição civil. Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas. Malvados havia que, aproveitando as declarações daquelas que lhes tinham sacrificado a última cousa que a mulher sacrifica, o pudor público, as abandonavam depois, servindo-se da generosa confissão que lhes salvara a cabeça para despedaçarem os laços santos, embora ocultos, que os ligavam às infelizes.

Os casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis. Negava-se não raro, depois, a existência de um facto que se não podia provar, e o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas núpcias pertencendo já a outro homem. Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor produziam infanticídios em larga cópia. Por outro lado, a dificuldade e o preço das dispensas para os consórcios entre parentes completavam a obra dos casamentos clandestinos. Inabilitados por falta de recursos para legitimarem as uniões vedadas, não tendo ânimo para abandonarem a mulher que amavam e vergando debaixo do peso das censuras canónicas, muitos indivíduos calcavam aos pés o sentimento religioso e adoptavam uma espécie de ateísmo brutal, esquecendo todos os actos externos do culto.

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Há poucos anos que um livro admirável agitou profundamente os espíritos, descrevendo a existência do escravo nos estados americanos. As cenas repugnantes ou dolorosas descritas naquele célebre livro poderiam ter sido colocadas no nosso país no meado do século XVI com a mudança dos nomes das personagens e dos lugares, mas talvez com mais carregadas cores. A vida do escravo, se acreditarmos a narrativa do informador dos padres de Trento, era nessa época verdadeiramente horrível em Portugal. Mas um povo afeito a ver tratar assim uma porção dos seus semelhantes deixaria de corromper-se e poderia conservar instintos de nobreza e generosidade?

Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o baptismo, não recebiam depois a mínima educação religiosa. Fé não a tinham, ignorando completamente o credo e até a oração dominical, o que não procedia só do desleixo de seus senhores, mas também da relaxação dos prelados. Era permitido entre eles o concubinato, misturando-se baptizados e não baptizados, e tolerando-se, até, essas relações ilícitas entre servos e pessoas livres. Os senhores favoreciam esta dissolução para aumentarem o número das crias, como quem promove o acréscimo de um rebanho. Os filhos de escravos até à terceira ou quarta geração, embora baptizados, eram marcados na cara com um ferro em brasa para se poderem vender; e por isso as mães, desejosas de evitar o triste destino que esperava seus filhos, procuravam abortar ou cometiam outros crimes. Os maus tratos de seus donos, acumulando o ódio nos corações dos escravos, faziam com que estes às vezes recusassem tenazmente o baptismo, que nenhum alívio lhes trazia. De feito, nas crueldades que sobre eles se exerciam não havia distinções. O castigo que ordinariamente lhes davam era queimá-los com tições acesos, ou com cera, toucinho ou outras matérias derretidas.

Uma circunstância agravava o procedimento que se tinha com estes desgraçados. Boa parte deles nem eram cativos na guerra pelos portugueses, nem comprados por estes aos vencedores nas lutas entre as nações e tribos bárbaras da África, da Ásia e da América: eram homens naturalmente livres, arrebatados da pátria pelos navegadores, e trazidos a Portugal para serem submetidos a perpétua servidão. Finalmente, os consórcios legítimos entre pessoas escravas e livres, consórcios assaz frequentes, tomavam-se para os senhores num meio de satisfazerem os mais baixos e ferozes instintos de crueldade; de folgarem com o espectáculo das agonias mais pungentes do coração humano. Quando o livre queria remir a consorte cativa, opunha-se o senhor, e não raro a pretensão dava origem a cenas de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava para terras longínquas, quebrando-se assim por um ímpio capricho os laços santificados pela Igreja.

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Tal era o estado da religião e da moral num país que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o céu com as fogueiras da Inquisição; tal era o estado económico desse mesmo país, que expulsava do seu seio ou assassinava judicialmente os cidadãos mais activos, mais industriosos e mais ricos, destruindo um dos principais elementos da prosperidade pública, ao passo que os desconcertos e prodigalidades de um Governo inepto sepultavam na voragem da usura todos os recursos do Estado.»

“História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal” de Alexandre Herculano. Edição Círculo de Leitores. 1987