Recordar a «Cheia Grande» no Guadiana (7 Dezembro de 1876)
Artigo escrito em 6 de Dezembro de 2006 no jornal "Barlavento" que recorda a grande cheia do Guadiana em 7 de de Dezembro de 1876, que inundou os campos alentejanos e as vilas de Alcoutim e de Mértola como nunca se tinha visto, após dois anos sem praticamente chover. Foi o resultado de chuvas torrenciais que atingiram todo o país, fazendo transbordar os principais rios e não só o "grande rio do sul". Se fosse agora, seriam as "alterações climáticas" devido à revolução industrial, coisa que nunca aconteceu em Portugal, mas que foram e devem ser consideradas normais em climas de forte influência mediterrânica.
por Aurélio Nuno Cabrita
Ainda hoje, quem percorre as povoações ribeirinhas do “grande rio do Sul” encontra uma série de placas que atestam a altura, quase inacreditável, que as águas do Guadiana tomaram naqueles dias, seja em Mértola, Alcoutim ou na margem Espanhola. A imprensa da época, através de correspondentes locais, não deixou de noticiar tão nefasta tragédia.
A «Gazeta do Algarve», jornal publicado em Lagos, na edição de 13 de Dezembro de 1876, citando o correspondente de Alcoutim, em carta datada do dia 6 daquele mês, refere que «O Guadiana há 3 dias que traz uma corrente assustadora e devastadora – mede a velocidade de 11 milhas por hora e tem alagado completamente todos os campos marginais». Aquele periódico menciona igualmente que «o Pomarão desapareceu. Todas as casas foram arrasadas, e nem se conhece o lugar onde existiam. A estação telegráfica desapareceu também, indo a mesa dela dar às margens de Ayamonte. Em Alcoutim houve perdas consideráveis, os campos estão debaixo de água, que entra dentro da vila em muitas casas e quintais. As carreiras a vapor foram interrompidas».
Também o «Correio do Meio Dia», publicado na então Vila Nova de Portimão, na edição de 17 de Dezembro, foca a grande tragédia, transcrevendo do «Comércio do Sul» (Faro) a narração dos acontecimentos: «No dia 7 recebemos a seguinte comunicação de José Francisco Bravo de Alcoutim, “uma exposição singela, mas verdadeira dos horríveis estragos e imensas apreensões de que todos nós por aqui nos achamos possuídos pelos efeitos do extraordinário temporal que há bastantes dias nos tem perseguido, chegando agora a um grau mais elevado. O rio saiu fora do seu leito. Desde ontem das 10 horas da noite por diante, seguiu a passos agigantados e assustadores que já hoje ás 10 horas da manhã chega, mas de um modo aterrador, à praça pública desta vila (Alcoutim) – 30 metros senão mais por diante do princípio das habitações dela. Tudo aqui se vê em desarranjo, todos deixam ver no semblante o medo pela tempestade que ameaça sorver-nos. Espessas nuvens toldam o horizonte e todos os sinais nos parecem anunciar próxima e mais grossa nova tormenta».
E de facto assim foi. «Em data de 8 nos dizem da mesma vila o seguinte: São 10 horas da manhã e a maior parte desta vila está debaixo de água. Não há por aqui notícia do Guadiana ter engrossado tanto como nesta ocasião. A igreja matriz está já meia coberta e a linha telegráfica está submergida. Têm abatido grande número de casas, embora estas ainda não se vejam na totalidade. Todas as repartições foram a terra, a alfândega foi a que sofreu mais porque não se poude salvar um único papel e supõe-se que não ficarão nem vestígios dela. Em Mértola também a cheia foi assustadora fazendo desabar bastantes casas e causando subidos prejuízos».
De alguns pontos, salienta ainda aquele jornal, «foram vistos arrastados pelas águas alguns cadáveres humanos – uma mulher agarrada a um tronco de uma árvore, uma criança de tenra idade num berço e um homem». A estas perdas de vidas humanas, juntaram-se ainda as tripulações de várias embarcações, que foram arrastadas pela corrente e naufragaram (11 mortos).
A gravidade dos acontecimentos dominou ainda a Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim, de 21 de Dezembro de 1876, também ela privada de edifício próprio, que reuniu em sala provisória, onde «o Sr. Presidente José Joaquim Madeira relatou os tristes acontecimentos ocasionados pela extraordinária cheia do Rio Guadiana nos dias 6 e 7 do corrente que fez desabar mais de 60 prédios nesta vila e montes do rio, tornando também infrutíferas todas as fazendas marginais por lhe haver arrebatado o arvoredo, não deixando mais do que montes de areia. Neste aflitivo estado é de toda a urgência empregar os meios ao nosso alcance para que sejam minorados tão tristes efeitos em assunto de tanta magnitude. Na Sessão foi por todos reconhecida a necessidade de elevar um brado ante o trono de Sua Majestade fazendo-lhe sentir os nossos infortúnios e pedindo lenitivo às nossas desgraças».
Foi então determinado representar ao governo, «pedindo um empréstimo para se poderem levantar os prédios que se abateram pela inundação, bem como pedir o dinheiro existente no cofre de viação municipal e que a ele possa pertencer durante os dez anos seguintes para a edificação dos novos Paços do Concelho». E finalmente «que não sendo conveniente a edificação no local em que se achavam por estarem sujeitos às cheias do rio se representasse pedindo o castelo, onde sem receio das enchentes se podem construir não só os Paços do Concelho como as demais repartições e escolas». Estes pedidos de ajuda acabariam por surtir efeito, e em Sessão de 17 de Março de 1877 foram concedidos os primeiros apoios para a reconstrução das habitações, num total de 9 926 000 réis. Estas não deveriam ser reconstruídas em taipa, «causa principal da maior parte dos desmoronamentos» durante a inundação.
Na Sessão de 24 de Abril do mesmo ano são atribuídos mais 19 470 000 réis aos agricultores das margens do Guadiana, num total de 147, cujos nomes e quantias se encontram discriminados na Acta daquela Sessão. Foram ainda concedidos 500 000 réis «para matar a fome e o frio aos inundados». Apesar das consequências terríveis da cheia, esta permitiu pôr a descoberto inúmeros vestígios arqueológicos ao longo do rio, particularmente em Mértola, Montinho das Laranjeiras e Álamo, locais pouco depois escavados pelo arqueólogo algarvio Estácio da Veiga.
Volvidos 130 anos, a memória da cheia reparte-se essencialmente pelos documentos de então, sejam jornais ou Actas de Vereação, impregnadas de desolação e terror, e pelas placas de mármore facilmente observáveis um pouco por todo o vale do Guadiana. Na memória dos homens, a grande cheia não passa hoje de um facto passado e inatingível para muitos, nos nossos dias.
Contudo, e se é verdade que a Barragem do Alqueva permitiu, em conjunto com as suas congéneres espanholas, dominar de certa forma o Guadiana, convém não esquecer que, se estiverem completamente cheias, a inundação a jusante será inevitável. Afinal, as muitas barragens do Douro não debelaram as cheias das zonas ribeirinhas de Gaia e do Porto...
Por estas razões, as margens do Guadiana não deverão ser ocupadas, sob pena de virmos a lamentar uma nova da catástrofe. Tal como as secas, as inundações são fenómenos cíclicos normais no nosso clima, quer queiramos quer não.
Imagem: Placa existente em Mértola a dezenas de metros acima do nível do rio
Fonte: Recordar a «Cheia Grande» no Guadiana (7 Dezembro de 1876)