Reflexões sobre a vida e obra de António José da Silva, o Judeu
Por João Paulo Seara Cardoso
Há na Glória Padecer
Tão alegres que viemos,
E tão tristes que nos tornamos.
(Vida do Grande D.Quixote de La Mancha e do Gordo D. Quixote)
Princípio
António José da Silva, O Judeu, constitui um caso singular na história do teatro português. Luís de Freitas Branco apelida-o de fundador da ópera nacional. Teófilo Braga considera-o um mártir da Inquisição. Há, por outro lado, uma evidente constatação: sem o Judeu, teriam decorrido trezentos anos da nossa história teatral (entre Gil Vicente e Garrett) sem dramaturgos com obra digna de relevo.
O Judeu vive num particular período (primeira metade do séc. XVIII) político social, que corresponde ao reinado de D. João V, monarca Magnânimo que, vivendo no pleno dos ideais barrocos, em tudo o que estes representavam de luxúria, de ostentação e de prazeres do espírito, se fazia rodear de uma faustosa corte, que se alimentava dos fabulosos lucros do ouro do Brasil. Este bem-estar da realeza e da nobreza protegida ofuscava, na verdade, as misérias de uma sociedade desestruturada do ponto de vista social e economicamente degradada. A Igreja constituía-se como um segundo poder dentro do estado e a Inquisição atuava impiedosamente sobre a heresia religiosa, perseguindo nomeadamente judeus e cristãos-novos.
A família de António José mantinha residência no Brasil desde que os seus trisavós maternos haviam emigrado para a colónia, fugidos do Santo Ofício, por práticas judaizantes. Durante algum tempo milhares de judeus tinham vivido em paz em terras brasileiras. Mas, em 1711, tinha António José seis anos, toda a sua família é obrigada a abandonar o Rio de Janeiro e a regressar a Portugal na sequência de uma intensificação da atividade inquisitorial na colónia.
Fixam residência em Lisboa e João Mendes da Silva, seu pai, retoma a sua atividade de advogado. António José estuda, ao que parece, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra.
É José Oliveira Barata, o maior e mais sério estudioso do Judeu, que descobre as assinaturas, pela mão do Judeu, nos Livros de Matrículas no Curso de Cânones, entre 1722 e 1725.
Em 1726 é obrigado a interromper os seus estudos, que ao que se pensa não viria a retomar, regressando a Lisboa onde o aguardava o seu primeiro processo inquisitorial. Entretanto, o Santo Ofício já prendera a sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar. Em 13 de outubro de 1726 António José é encarcerado nos Estais (sede da Inquisição, ao Rossio, onde hoje existe o Teatro Nacional D. Maria II) e duramente torturado. Do seu processo (Inquisição de Lisboa, processo nº 3464), consta que “o réu, despojado dos vestidos que podiam servir de embaraço ao dito tormento, foi lançado no potro, e começado a atar, lhe foi notificado por mim, notário, em nome dos senhores inquisidores, que se naquele momento morresse, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos senhores inquisidores e mais ministros que foram na sua causa”. Sai ao fim de dez dias de tortura impiedosa, os seus bens confiscados e condenado a pena de cárcere e hábito penitencial perpétuo e ainda a ser instruído nos mistérios da fé.
Aos vinte e um anos, o curso de Direito interrompido, enredado nas malhas da brutal Inquisição, António José terá encontrado a sua forma de viver e sobreviver trabalhando nos escritórios de advocacia do pai e do irmão Baltasar. Passando ao lado da polémica acerca do facto do Judeu ter ou não terminado o curso de Coimbra, não há dados factuais que nos permitam reconstituir a sua vida até 1733 (“seis anos enigmáticos”, diz Barata), quando abre o Teatro do Bairro Alto e nele se representa a sua primeira ópera, A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança. Sabe-se apenas que morava no Socorro, paredes meias com o local mais movimentado, em termos teatrais, da Lisboa Joanina, o Pátio das Arcas. É por demais evidente que este terá sido um dos factos determinantes para que o homem de direito se tornasse num dos mais importantes dramaturgos portugueses.
(*) Mote que glosou de repente Antº José da Silva qdo estava na Relação para hir a queimar de Garrote em 18 de outubro de 1739. Diz a lenda que o Judeu terá composto umas décimas com o mote há glória no padecer, há na glória padecer, às portas da Relação, a meio do percurso que o conduziria à fogueira. Mais crível que tenham sido escritas pelos seus amigos da companhia do Teatro do Bairro Alto, que o acompanharam.
Meio
Desde o período da dominação castelhana, que o pujante teatro espanhol do Siglo de Oro se impusera em Portugal, aliás, um pouco por toda a Europa, e a produção teatral de raiz nacional era insignificante e muito influenciada pelo modelo espanhol. Há mais de um século que, pelos pátios das comédias, (recintos teatrais encaixados em espaços interiores do casario da cidade, em forma de ferradura, nos quais o público se posicionava no chão, em frente do palco, ou em galerias dispostas à volta do espaço) passavam as companhias do país vizinho apresentando um reportório que fazia grande sucesso junto do público popular, da burguesia e da nobreza arruinada que frequentavam o Bairro-Alto.
O teatro de A.J. da Silva não podia, pois, deixar de refletir influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII, nomeadamente dos seus maiores expoentes, Lope de Vega e Calderon. Do primeiro, adota o Judeu o rigor formal da obra poética. Aliás, a arte de escrever comédias encontrava-se muito influenciada pela Arte Nuevo, um conjunto detalhado de cânones, redigidos por Lope, que pretendiam normalizar ou aconselhar o trabalho do escritor de comédias. De Calderon bebe o Judeu o espírito revolucionário mais de acordo com os ideais do Barroco, nomeadamente no que se refere à influência do melodrama e posteriormente da ópera que, surgida em Itália, rapidamente alastrava pelos palcos europeus.
António José é, pois, um homem do Barroco, que como criador vive em pleno o espírito dos tempos e, assim, aspira a uma nova arte teatral, menos vinculada à retórica e mais voltada para o deleite dos sentidos, que marcará definitivamente o teatro português. É na forma e na estrutura dramática que o Judeu inova. Por um lado escrevendo em prosa, uma novidade, já que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; por outro, incorporando a música na intriga dramática, criando um modelo original de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano e dando início, de forma incipiente, ao projeto da ópera nacional. Curiosamente, um regresso às grandes origens, já que os elementos: representação, recitativos em verso e canto, constituem uma espécie de síntese dos elementos da tragédia grega.
O Barroco, cuja génese se encontra fortemente associada à contrarreforma, constitui-se como um movimento de consciência que pretende reintroduzir a espiritualidade na criação humana, como reação ao classicismo, ao racionalismo pagão renascentista. A arte barroca já não repousa no equilíbrio, na simetria, na linha reta e na perspetiva, mas numa certa desordem, no desenho curvilínio, numa sensualidade exuberante que apela aos sentidos.
De que forma se refletem esses ideais no teatro? Através de uma representação exuberante, do recurso ao maravilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os espectadores e os surpreendem a cada passo. Surgem as cenografias ilusórias, as tramoias espetaculares com frequentes mutações de cena garantidas por sofisticados mecanismos. Animam-se as ondas do mar, as nuvens do céu, as trovoadas e os raios, constroem-se máquinas sonoras poderosas, fazem-se descer ao palco os deuses do Olimpo, na cena irrompem sereias e dragões, e tudo se funde ao serviço de uma arte espetacular, de um grande teatro da ilusão.
“A “comedia de teatro”… apresentava-se triunfante e capaz de conquistar as plateias do espaço ibérico barroco. Oferecia um mundo tridimensional, composto de texto poético , efeitos visuais, sonoros e musicais, tudo enriquecido por uma forte componente visual (edifício, cena, vestuário, atores, mutações). Assim se procurava combinar numa mesma arte- antecipando Wagner! - o fónico e o visual, ou se se preferir, a combinação simbiótica entre o corporal e o espacial.”
José Oliveira Barata, História do Teatro em Portugal (séc. XVIII), António José da Silva (o Judeu) no Palco Joanino
É no Teatro do Bairro Alto, uma sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, e também chamada Casa dos Bonecos, que António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando já se encontra encerrado nos cárceres da Inquisição.
Na Dedicatória à mui Nobre Senhora Pecúnia Argentina, que surge nas páginas do Teatro Cómico Português, existe uma deliciosa descrição do ambiente do Teatro do Bairro Alto, em dias de representação:
“… tudo anda num corropio, o porteiro se ataranta, o arrumador se titubeia, o chocolate se derrama, o doce desaparece; as luzes parecem estrelas, as arquiteturas dóricas, as vozes harmoniosas, os instrumentos mais se apuram, os cantores mais se afinam, os duos mais se ajustam, os bastidores não necessitam de sabão para correr; e finalmente até parece que a alma do arame no corpo da cortiça lhe infunde verdadeiro espírito e novo alento.”
As comédias do Judeu, que ele denomina de óperas joco-sérias, correm ao longo de dois planos e de uma dupla intriga: o fantástico e a realidade, o discurso sério e o gracioso, os poderosos e os criados, o amor nobre e o amor prosaico, o mundo sobrenatural e o mundo dos humanos. Assim se desenvolve uma estratégia dramatúrgica que permite um constante zapping entre espaços e situações, contribuindo para o progresso da intriga e para a comicidade da peça.
Seis das obras do Judeu inspiram-se em episódios da mitologia grega bem conhecidos do público setecentista e exaustivamente explorados pelos poetas dramáticos. Note-se que, à época, o conceito de plágio era bem diferente daquele que hoje conhecemos. E os autores escreviam quase sempre a partir de temas e mitos bem conhecidos do público e não de assuntos originais.
“Não surpreende, pois, o encontrarmos a cada passo, em qualquer reportório de obras ibéricas deste período, um quase infindável rol de títulos repetidos, apesar de variarem os seus autores.”
Barata, idem
Em muitos casos, estes limitavam-se apenas a reescrever as obras de outros acrescentando tiradas de gosto pessoal adaptadas ao público a que se destinavam. É neste ponto que o Judeu se distingue dos seus contemporâneos ao criar uma linguagem muito característica e ao dotar as suas obras de uma grande perfeição dramática. No caso de Os Encantos de Medeia, o tema dos argonautas e da grande epopeia de Jasão em busca do Velo de Ouro era um tema regularmente tratado na literatura dramática (por exemplo, Lope de Vega havia publicado muitos anos antes o Vellocino de Oro ). Mas o mais surpreendente foi ter o Judeu conseguido escrever uma comédia tomando como assunto uma das mais impressionantes tragédias do teatro grego, a Medeia, de Eurípides. Claro que, ao contrário da obra prima de Eurípides, tudo acaba bem, e os episódios terríveis da tragédia, como o da morte dos filhos de Medeia, são omitidos, até porque fora do tempo de ação, que aqui se limita à estadia de Jasão e dos Argonautas na ilha de Colcos, com o fim de roubar o Velo de Ouro.
É evidente, também, que escrever sobre assuntos mitológicos era para o autor uma forma de se defender da censura eclesiástica a que se deviam submeter todas as obras que eram editadas ou representadas. Porque os deuses do Olimpo eram outros que não os que pairavam nos céus de Lisboa… Assim, a ação, aparentemente, decorria em lugares fabulosos e longínquos, nos quais, de forma subtil, o Judeu fazia um jogo de espelhos que refletiam as questões fundamentais do seu tempo, da sua sociedade e da sua condição.
Apesar dos locais cénicos onde decorre a intriga das peças do Judeu serem sempre retirados de fábulas míticas (à exceção das Guerras do Alecrim e Manjerona), o que o espectador do Bairro Alto tinha perante si quando via Creta, Parnaso, Flegra, Atenas ou Colcos, era a realidade lisboeta em pleno domínio joanino.
Barata, idem
Curiosa e reveladora era também a Protestação do Collector, de menção obrigatória no final de cada obra que saísse do prelo, na qual o editor explicitava que:
“As palavras Deoses, Numen, Fado, Divindade, Omnipotência e Soberania se devem somente entender no sentido poético e não com intenção de ofender em cousa alguma os dogmas da Santa Madre Igreja, a quem, como obediente filho, me sujeito em tudo o que ela determina.”
Estranhamente, ou talvez não, surgem escassas referências à atividade teatral do Judeu nos processos inquisitoriais, embora, naturalmente o Teatro do Bairro Alto fosse um local de grande afluência de público e o autor das óperas um homem sobejamente conhecido no meio lisboeta. Tanto mais que de uma forma mais ou menos explicita se revela uma forte crítica à sociedade portuguesa setecentista. É recorrente a crítica aos desvarios da aristocracia , ao fidalgo bem falante e amaneirado cuja atitude sucumbe perante a esperteza e o bom senso do criado, à justiça dos poderosos, a liberdade é enaltecida por oposição à escravidão, ridiculariza-se a lógica formal escolástica e a vazia retórica barroca.
“As cabeleiras de todos os fradalhões, desembargadores, e poetastros de todas as academias de Obscuros, Anónimos, Singulares, Generosos, Aplicados, estremeceram, eriçaram-se ao ver exposta ao ridículo das gargalhadas da plateia do Bairro Alto a sabedoria que acobertavam com tanto respeito. O catafalco carunchoso da Escolástica da idade média, levou aqui o seu primeiro solavanco…António José deixou a nu este ridículo do seu século, mas foi este ato de heroicidade um dos que mais contribuiu para a sua morte.”
Teófilo Braga, História do Teatro Portuguez
Pensa-se que António José era autor-ensaiador das peças que fazia representar com a sua companhia no Teatro do Bairro Alto. A produção é intensíssima. O Judeu escreve e faz representar oito óperas em apenas sete anos. A companhia seria formada por cerca de 8 atores, número adequado ao desempenho de todos os personagens tipo que surgem em cada peça. Na verdade, os personagens da comédia da época correspondem a clichés herdados da tipologia de personagens da commedia dell’arte e “as companhias espanholas acabavam por se reduzirem a uma estrutura fixa de personagens principais, repartidas entre damas, galãs, graciosos, e ainda o bem conhecido vejete, velho ridículo que tanto sucesso fazia”. Quanto ao acompanhamento musical, Freitas Branco estima que “a orquestra do Teatro do Bairro Alto, na época em que o Judeu estreou as suas óperas, constava em geral de: dois oboés, duas trompas, tímbales e instrumentos de arco”. Havia ainda os cantores (em número que rondaria os oito) e os tramoistas, nome que na época se dava aos que faziam as tramoias, isto é, os efeitos cénicos espetaculares que tanto deliciavam os espectadores do Bairro Alto. Como se pode ver, não era uma companhia pequena, e se juntarmos aos intervenientes no espetáculo os que contribuíam para o preparar, por vezes em tempo recorde ( apenas três meses separam, por exemplo, a estreia de Guerras do Alecrim e Manjerona- Carnaval 1737, da de Variedades de Proteu- maio de 1737) como os construtores das marionetas e dos adereços, os carpinteiros e os pintores dos cenários, os alfaiates, etc, podemos facilmente chegar a um número que se aproxima das quatro dezenas.
O êxito alcançado pelas óperas foi enorme. Um público entusiasmado enchia a sala do Teatro do Bairro Alto e aclamava as representações. Ainda em vida do autor seriam publicadas, por Isidoro da Fonseca, o Labirinto de Creta (1736), as Variedades de Proteu e as Guerras de Alecrim e Manjerona, ambas em 1737. Após a sua morte, o editor Francisco Luís Ameno, homem culto da Lisboa setecentista, poeta, conhecedor de línguas e tradutor de Goldoni e Metastásio, viria a fazer justiça à grandeza de António José, reunindo, em 1744, toda a sua obra em dois volumes intitulados Teatro Cómico Português. A publicação alcançou tal sucesso que viria a ser reeditada cinco vezes até ao final do século, isto para além das cópias piratas que corriam pela cidade…
“…foi tão grande o aplauso e aceitação com que foram ouvidas as Óperas que no Theatro do Bairro Alto de Lisboa se representaram desde o ano de 1733 até o de 1738, que não satisfeitos muitos dos curiosos com as ouvirem quotidianamente repetir, passavam a copiá-las, conservando ao depois estas cópias com tal avareza, que se faziam invisíveis para aqueles que desejavam na leitura delas, uns apagar o desejo de as lerem, pelas não terem ouvido, outros renovar a recreação com que no mesmo theatro as viram representadas.”
Simão Tadeu Ferreira, prefácio à 4ª reedição do Theatro Cómico Portuguez
Refira-se que as obras são publicadas anonimamente, de modo a precaver o editor do facto de António José ter sido um homem aniquilado pela Inquisição. Parece ter sido Francisco da Silva Inocêncio, autor do Dicionário Bibliográfico Português, quem descobriu, nas Décimas finais do prefácio Ao leitor desapaixonado, a assinatura em acróstico (composição na qual as primeiras letras de cada verso, lidas na vertical, formam um nome) do verdadeiro autor da obra: António Joseph da Silva. Uma subtileza do editor que não permitiria que, para a posteridade, restassem dúvidas quanto à autoria das óperas.
Um facto de grande importância no estudo do Judeu que nos vem possibilitar ter, hoje, uma ideia mais rigorosa da distância que separava a obra original destinada à representação, da obra publicada, sabendo-se que, à época, os editores retocavam os textos que se destinavam a publicação, por temor da censura secular e eclesiástica, foi a extraordinária descoberta, nos anos setenta, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, por Barata, do manuscrito original de A Vida de Esopo. Conclusão evidente que se tira da comparação do manuscrito com o texto editado é a de que, na verdade, existem diferenças notórias entre o que o autor escrevia (e fazia representar) e a obra que chegava ao leitor. Há censura de bons costumes, omitindo-se deliciosas expressões mais licenciosas, vulgo asneirada, que deveriam deliciar os espectadores do Teatro do Bairro Alto, censura religiosa, suprimindo-se passagens suscetíveis de condenação pelos censores, corte de indicações cénicas e um sem número de adaptações que tinham sobretudo a ver com a necessidade de fazer chegar aos potenciais leitores um texto que tinha especificamente sido escrito para o palco.
Não deixa de ser extraordinário que o Judeu tenha escrito as suas óperas para marionetas. Como se teria apaixonado por elas, como terá entendido que seriam os melhores protagonistas para o seu teatro, como terá adquirido os conhecimentos técnicos que lhe permitiriam realizar os espetáculos? Já se viu que o Judeu era um espectador atento e assíduo do teatro que passava em Lisboa, tanto mais que vivia no coração da movida teatral lisboeta. E nessa época, numerosas trupes oriundas da europa, sobretudo de Espanha e Itália, representavam os seus espetáculos nos diversos pátios da capital. Há muitas referências, nem sempre elogiosas, à atividade dos titereiros:
A estes se podem ajuntar os manejadores de títeres, ministros de particular entendimento, e que fazem dizer, e obrar, o que querem, metendo-os em campanha, aonde pelejando se vencem uns aos outros: industrias todas que são como gazuas universais para abrir as bolsas.
E numa época de censura, um ano antes do auto de fé que haveria de conduzir o Judeu às fogueiras do Santo Ofício, nem os espetáculos de marionetas parecem terem escapado à vigilância inquisitorial:
Lisboa 29 de julho de 1738. Já se trabalha no Theatro da Opera… e acabando-se os Bolantins, que tiveram grande concurso, o qual continua a ver umas figuras artificiosas que os ignorantes não podem crer que são naturais e tem sem dúvida curiosos movimentos que já se examinaram na Inquisição.
Sem dúvida deliciosa a expressão “figuras artificiosas que os ignorantes não podem crer que são naturais”. É de crer, pois, que António José tenha visto espetáculos de marionetas e que tenha sentido que elas poderiam ser os protagonistas ideais dos textos que tinha em mente escrever. Relativamente à técnica usada na representação, não pode haver dúvidas de que se tratavam de marionetas de varão, já que eram as únicas que se adaptavam a um tipo de teatro que pretendia reproduzir, de forma miniaturizada e fiel, a cena à italiana. Os materiais de construção usados seriam a madeira, para a escultura das cabeças, mãos e pés, o arame para o esqueleto e articulações e a cortiça (material equivalente em peso e facilidade de modelação à esferovite que hoje se usa com a mesma finalidade) para a reprodução das formas do corpo (“a alma do arame no corpo da cortiça”). São frequentes, ao longo do texto das óperas as alusões graciosas à materialidade dos atores:
Quem se não há de enamorar dessa carinha que parece mesmo pintada a óleo de linhaça? (Vida de Esopo)
Cala-te, tola mecânica!(O Labirinto de Creta)
Quando frates sunt boni, sunt bonifrates. (Variedades de Proteu)
E, pensando num público menos familiarizado com este género teatral, na advertência ao leitor desapaixonado, que precede o texto teatral do Teatro Cómico Português, o editor pede benevolência ao espectador:
…saberá discernir a dificuldade da cómica em um teatro onde os representantes se animam de espírito alheio, donde os afetos e acidentes estão sepultados nas sombras do inanimado, escurecendo estas muita parte da perfeição que nos teatros se requer, por cuja causa se faz incomparável o trabalho de compor para semelhantes interlocutores; que, como nenhum seja senhor das suas ações, não se podem executar com a perfeição que devia ser. Por este motivo, surpreendido muitas vezes o discurso de quem compõe estas obras, deixa de escrever muitos lances, por se não poderem executar.
No que à musica se refere, por que razão teria o Judeu decidido incluir nas suas obras trechos cantados, de uma forma nunca antes tentada no teatro português?. Além da evidente influência da zarzuela espanhola e do melodrama é bom lembrar que a ópera era a grande moda que nesse momento chegava aos palcos portugueses, embora numa primeira fase a ela só tivessem acesso a nobreza e a realeza. A primeira ópera é apresentada em Portugal em 1720. Em 1735 inaugura-se o Teatro da Trindade e até ao fim do século abrirão mais quatro, entre os quais o Teatro São Carlos e o S. João do Porto (destruído por incêndio em 1908 e sobre as ruínas do qual se erigiu o atual, da autoria de Marques da Silva). Na corte e nos palácios faustosos da família real a ópera delicia a aristocracia ávida dos prazeres do espírito. A operática família Paghetti estabelece-se em Portugal e as famosas Paquetas, como eram conhecidas, põem os galãs lisboetas de cabeça perdida. Nem o rei escapa aos encantos de uma tal deslumbrante Petronilla. E nesta tarefa renovadora da arte teatral, António José mais não faz do que adotar os preceitos do seu mestre, Calderon:
No es comedia sino solo
Una fabula pequena
Em que, a imitación de Italia,
Se canta e se representa
Freitas Branco é de opinião que o Judeu seria poeta-compositor, facto nunca provado (O Judeu deve ser considerado como autor da primeira ópera sobre texto português, e portanto da primeira ópera verdadeiramente portuguesa). Sabe-se sim que, D. João V, tomado pelo entusiasmo da ópera, tinha mandado estudar em Roma, na qualidade de bolseiro da coroa, o compositor António Teixeira que, posteriormente, viria a fazer parte do círculo restrito de colaboradores de António José. É de supor que António Teixeira tenha sido a alma gémea criativa do dramaturgo e que tenha composto todas as árias das suas peças, pois, pelo menos, tem-se hoje a certeza ser da sua autoria a música das Guerras do Alecrim e Manjerona e das Variedades de Proteu, da qual se encontraram nos arquivos do Paço Ducal de Vila Viçosa cópias das partituras originais. Também recentemente, pela mesma mão do compositor Filipe de Sousa, foi descoberta na Biblioteca da Universidade de Coimbra a música da ultima obra do Judeu, o Precipício de Faetonte.
Escrevendo em prosa, é a música que lhe permite criar composições poéticas destinadas a serem cantadas, as árias. Pois, como bom português, António José é um arrebatado lírico. Além de escrever magníficos poemas de amor, é o amor, sempre, o grande motor de todas as suas peças, que constituem autênticos manuais das humanas variações amorosas. O amor em todas as suas condições: amores desencontrados, amores não correspondidos, amores platónicos, amores prosaicos, amores interesseiros, amores de ricos e amores de pobres, de príncipes e de reis, de criados e criadas, amores de velho e amores de juventude, amores impossíveis e necessáriamente, o contraponto do amor, essencial para a abordagem da dialética dos sentimentos, sempre presente na obra, o ciúme, ou na linguagem da época, os zelos. Vale a pena ler o maior monólogo existente nas obras do Judeu, a magistral definição do amor que é dada por Esopo, o grande escravo filósofo. E não se pense que, embora tratando-se de um escritor de teatro, seja pequena a sua produção poética: ao longo das oito óperas surgem 174 composições poéticas, entre árias, coros e sonetos. É nesta condição de poeta dramático que o Judeu se torna numa figura ímpar da cultura portuguesa, pois contrariando a tendência geral da criação literária de um país que sempre gerou grandes poetas e medianos dramaturgos, concilia brilhantemente as duas expressões da alma.
Fim
Na manhã outonal de 18 de outubro de 1739, o majestoso cortejo do Auto de Fé sai ordenadamente do Palácio da Inquisição e serpenteia pelo Rossio, até entrar na Igreja do Convento de S.Domingos, do outro lado da praça. Atrás do flamejante estandarte do Santo Ofício vêm dezenas de guardas e inquisidores conferindo a necessária pompa ao cortejo dos 56 penitenciados. O povo, que há já quinze dias ouve apregoar o Auto, enche a praça e exubera: “Grande misericórdia, bendito o Santo Ofício”, esperando que o grande espetáculo da morte lhe espie os pecados. António José é o número sete da lista dos hereges. Tem 34 anos. Vem desfigurado da tortura e com dificuldade encara a luz do dia, após dois anos e treze dias de cárcere escuro. Veste uma aviltante túnica branca com a sua cara toscamente pintada no meio de labaredas e diabinhos a mordê-lo. No rol dos penitenciados vêm também a sua mãe Lourença, o irmão André e a mulher Leonor. Já dentro da igreja, os réus ouvem penosamente a leitura das culpas e longos sermões que invocam a implacável ira divina para com os hereges.
Ó infelizes despojos de Israel, desgraçadas relíquias do hebraísmo […] na estimação de Deus sois a gente mais abominável do mundo.
O ritual termina já noite dentro e o cortejo dos relaxados (condenados à morte) sai da igreja dirigindo-se, pelas ruas estreitas da velha Lisboa, ao tribunal da Relação, lá para os lados da Sé. Aí, o Inquisidor-mor lava as mãos do pecado e remete para a justiça secular a execução da pena, que o tribunal se limita a confirmar.
Declaram o réu António José da Silva por convicto, negativo, pertinaz e relapso… e como herege apóstata de nossa Santa Fé Católica o condenam e relaxam em carne…
Nova viagem descendo a encosta até ao queimadeiro, no Campo da Lã, junto ao Tejo, onde se encontra montada a improvisada cenografia da morte: tablados de madeira, para que o público tenha boa visibilidade, espessos mastros equipados de garrotes para que se proceda à morte sem efusão de sangue e monumentais pilhas de lenha.
Adverti que os Deuses não permitem, nem as leis ordenam, que sem culpa morra um inocente.
(Anfitrião ou Júpiter e Alcmena)
O sol já brilha nas águas do Tejo quando o corpo de António José é lançado nas chamas da fogueira.
Morrer como valorosos, que maior afronta é cair nas mãos do vencedor.
(Os Encantos de Medeia)
(Post scriptum- Em época de fundamentalismos religiosos,a Oriente e a Ocidente, a história deste homem que, fiel à sua fé encarou com grande dignidade a morte, poderia servir de exemplo e memória para que barbáries semelhantes à Inquisição não voltassem a existir nesta Terra e para que a liberdade que a todos os homens assiste ,na sua fé e no seu pensamento, fosse o bem mais precioso)
Imagem de destaque: Procissão de auto-da-fé, saindo dos Estaus e desfilando pelo Rossio (J. A. Colmenar, 1707)
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