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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Relato de uma vítima de abuso sexual infantil

14.07.23 | Manuel

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Homem, 45 anos, solteiro, em situação carcerária, autor confesso de múltiplos crimes de abuso sexual infantil, foi ele próprio vítima de forma continuada de abuso sexual na infância. É visto, a seu pedido, por sentir necessidade de ajuda, tendo aceite a nossa proposta de iniciar o tratamento psicológico por uma primeira fase de «exposição em imaginação». Foi-lhe assim sugerido, desde a primeira entrevista, que procurasse recordar-se o melhor possível de todos os acontecimentos traumáticos da infância.

Fez este relato circunstanciado da sua vivência traumática pela primeira vez na sua vida, ao longo de cinco entrevistas individuais, inicialmente sob grande pressão emocional, que se foi gradualmente esbatendo.

As interrupções por crises de choro convulsivas foram também diminuindo. Decidimos seleccionar apenas a parte mais relevante do seu relato. Tentámos aqui transcrevê-lo utilizando o discurso directo porque nos parece reproduzir melhor para o leitor o forte impacte emocional com que estas entrevistas também marcam os entrevistadores...

Também dispusemos por ordem cronológica as suas recordações, porque o seu relato era por vezes fragmentado e só se foi tornando gradualmente mais preciso com a repetição das recordações, como é de resto típico na narração das memórias traumáticas.

Relato:

«Chamei mãe à Casa Pia, é onde me lembro de ter sido criado, mal me lembro de andar ao colo de uma senhora, não sei se era minha mãe, sei que tenho uma irmã mais velha do que eu, mas não sabia da sua existência, pois só a conheci há pouco tempo. Entrei aos 4 anos na Casa Pia e aos 4 anos e meio comecei a ser violado por dois monitores, depois por dois professores, pelo padre do colégio e por alunos mais velhos. Tenho dificuldade em falar disso ainda agora, dormíamos em camarata, éramos 60, em camisa, sem cuecas, os monitores aproveitavam-se de mim, faziam penetração anal. Também faziam o mesmo com outros três ou quatro miúdos.

Havia dois monitores, tinham dois quartos, um em cada ponta da camarata, levavam dois de nós de cada vez, um ficava à porta à espera que o outro saísse e depois entrava, fui sempre o 1.º ou o 2.º, nunca fui o último, não sei porquê, e dois ou três dias depois éramos levados para o quarto do outro monitor, eles combinavam um com o outro, usavam só um quarto de cada vez. Atavam-me com corda fina, que usavam para os trabalhos manuais, tipo nylon, punham-me panos nos pulsos para não deixarem marcas, também nos tornozelos, carregavam com os joelhos nas pernas para não me poder mexer, punham-me um trapo na boca para não gritar e uma toalha de rosto ou um lençol à volta da cabeça para não os ver e faziam penetração anal durante 15 ou 20 minutos, não ejaculavam, limpavam o pénis a uma toalha, depois vinha o outro, fazia a mesma coisa... Passados uns dias, faziam no outro quarto, para não dar tanto nas vistas aos rapazes mais velhos, mas estes sabiam... Voltava para a cama para dormir, mas arrastava os pés por causa das dores no ânus e nas pernas, dormia muito mal a pensar naquilo, sentia tristeza e chorava muito porque não tinha ninguém, sentia raiva, as camisas de noite ficavam sujas com sangue, quantas vezes ficava com sangue no ânus, passava para a camisa, tenho ainda marcas no pénis (quer que eu lhe mostre?) porque às vezes punham-me uma corda amarrada ao pénis, que apertavam se eu chorasse. Tinha dores no corpo, dificuldade em andar e obrar, ainda agora tenho prisão de ventre por causa disso, não conseguia ir nas procissões porque me custava andar e me sentia fraco, um deles teve de fugir porque levou porrada de um irmão de uma das crianças, eu, como não tinha ninguém, não me podia defender, era dos mais atacados, estas violações eram semana sim, semana não...

... os rapazes mais velhos também nos violavam, eram seis ou sete, tinham 17 ou 18 anos, esses era durante o dia, mais ao sábado e ao domingo, ainda até há pouco tempo os mais velhos violavam os mais novos, agora penso que isso já acabou com a nova Provedora...

... partiram-me a cabeça à pedrada sete ou oito vezes (mostra duas cicatrizes no couro cabeludo), estou lá sempre a tocar (cicatrizes), lembro-me e sinto raiva por aquilo que me fizeram, os monitores tinham medo dos mais velhos, não havia praticamente vigilância a seguir à hora do jantar...

... agarraram-me nos balneários, eram quatro, enquanto dois agarravam os braços, os outros abusavam...

... tinha 5 anos ia às aulas de religião, o padre sabia que os monitores me faziam aquilo na camarata, levou-me para a sacristia, que era perto da sala de aulas, disse-me para pôr as mãos para a frente em cima da secretária, não me amarrou, disse que me dava rebuçados e que não dissesse a ninguém, despiu-me as calças, penetrou-me analmente, disse-me para eu não olhar para trás para ele, mas eu vi que ele estava vestido com a casaca (sotaina?) e o colarinho, fiquei ainda pior, por ser o padre, eu não esperava aquilo, mas sei que ele fez a mais crianças e até às miúdas de St.ª Clara, contei a uma professora, que está em Oliveira do Hospital, ela sabe disso...

… no ginásio, eu tinha 6 anos, fui violado uma vez, íamos ver jogar basquete, chamaram-me para segurar as toalhas no banho, houve três que me agarraram e um penetrou-me, sentia muita raiva porque eu era sempre a vítima, com os outros três miúdos mais novos...

... aos 5 ou 6 anos, o professor Gonçalo levou-me a casa dele, mostrou-me revistas com mulheres nuas e masturbou-se mas não me penetrou, depois, na sala de aula onde se equipavam, estávamos sozinhos, fechou a porta à chave, agarrou-me, mandou-me baixar os calções e violou-me, depois deu-me 7$50, eu não esperava aquilo, fiz queixa ao chefe de disciplina, que não fez nada...

... um outro professor, o «zarolho», eu tinha 6 anos, na sala de aulas, fechou a porta e pediu-me para o masturbar, não me fez mais nada mas ameaçou-me com pancada se eu contasse a alguém...

... uma vez cortei um pé de propósito, tinha 6 ou 7 anos, fui suturado no Hospital, contei ao chefe de disciplina e ao director para acabar com os abusos, mas nada aconteceu...

... tinha sonhos de noite, em que via a cara do padre, dos monitores, dos professores e dos mais velhos, de todos os violadores, que foram doze, nunca lhes aconteceu nada, acordava e ficava sentado na cama, enrolado no cobertor, a tremer e a doer-me o corpo...

...ninguém me prestava atenção a não ser a mãe Mariana (funcionária), que me levava para casa aos fins-de-semana, com os filhos, alguns da minha idade, comecei-lhe a chamar mãe, vi que ela tinha conhecimento do que se passava mas naquele tempo do Salazar era muito difícil arranjar trabalho na função pública...

... desde os 6-7 anos que fugia com os outros miúdos pela janela da camarata, descíamos o poste da electricidade da Carris, ia dormir na rua, era melhor do que ficar lá, deixei de fugir aos 11 anos depois de conhecer a D. Mariana, não tem conta as vezes que fugi, lá fora passava fome, apanhava chuva, eu não conhecia bem os sítios, lembro-me que ficava às vezes debaixo de um toldo, aos 8 anos fugi durante 14 dias mas não saí daquela zona, fui encontrado pelos mais velhos, deram-me murros e pontapés em todo o corpo, até na cara, e os educadores proibiram-me as saídas como castigo, às vezes fugia e ia andar de barco {cacilheiro) à borla, outra vez, aos 7 anos, fui com dois colegas, também abusados como eu, ao Cais do Sodré, um deles atirou-se vestido à água mas foi salvo, um outro, o Gonzaga, vi-o há tempo na «sopa dos pobres» (Anjos), falei com ele, vive na rua, arruma carros, já foi pedir comida à Casa Pia, ninguém nos ajudou, os outros não sei deles...

... tinha 7 ou 8 anos, lembro-me de uma senhora que me foi visitar e levou bolos e rebuçados, fiquei sempre a pensar que era a minha mãe mas ela não disse quem era, a assistente social disse-me que também não sabia, ainda hoje penso que era a minha mãe mas não tenho a certeza...

... agarraram-me e encostaram-me à parede, tinha 11 anos, ao pé da sala do «oculista», que estava em obras, eles eram muitos, mas só um é que me violou, os outros agarravam-me os braços e o cabelo, empurravam-me a cara contra a parede, para eu não ver quem era...

... aos 13 anos e 4 meses, quis-me matar, à noite o monitor viu a janela aberta, apanhou-me já pendurado, para me atirar para alinha do comboio, já havia pessoas em baixo a ver, na passagem dos peões, eu gritava que me queria matar, ele puxou-me para dentro por uma perna, a partir daí todos os violadores souberam que me quis matar, e nunca mais tentaram nada, ainda fiquei até aos 16-17 anos na mesma camarata onde fui violado, com os mesmos monitores, mas comecei a sentir-me já um rapaz crescido, com força, nem sequer lhes falava, eles tinham já medo de mim e por isso nunca mais voltaram a violar-me...»

Nota final

Este relato foi no essencial confirmado em entrevistas a duas testemunhas-chave que o acompanharam de perto durante essa época (mãe e irmã adoptivas).

In Afonso de Albuquerque, “Minorias Eróticas e Agressões Sexuais” (Edições Dom Quixote. Lisboa, 2006).

Imagem: https://marocas.blogs.sapo.pt/57838.html