Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

SARTRE: O que significa literatura comprometida?

24.05.22 | Manuel

sartre2.jpg

Sartre considera-se um escritor comprometido (engagée). Reclama que o escritor tem de se comprometer, de se empenhar. O que significa esta reivindicação?

Sartre faz uma distinção radical entre a poesia e a literatura. Ambas as formas se exprimem pela linguagem, o que dificulta a sua diferenciação. O que se entende por linguagem é diferente em cada um dos casos. A própria linguagem modifica-se quando se passa da linguagem da poesia para a linguagem da literatura.

Para o escritor, a linguagem é um instrumento, do qual ele se serve para expor e exprimir factos. O poeta, pelo contrário, não precisa da linguagem enquanto instrumento e põe-se, antes de mais, ao serviço dela.

Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. De facto, o poeta retirou-se com decisão da linguagem-instrumento, "escolheu definitivamente a atitude poética, considerando as palavras como coisas e não como sinais. Porque a ambiguidade do sinal implica que se possa atravessá-lo à vontade, como um vidro, e perseguir através dele a coisa significada ou voltar a olhar para a sua realidade e considerá-lo como objecto. O homem que fala está para lá das palavras, perto do objecto; o poeta está para aquém. Para o primeiro, são serviçais; para o segundo, permanecem no estado selvagem. Para aquele, são convenções úteis, utensílios que se gastam pouco a pouco e que se deitam fora quando já não servem, para o segundo, são coisas naturais que crescem naturalmente, como a erva e as árvores.

(…)

Quando contemplo uma paisagem, relaciono os seus elementos uns com os outros a meu bel-prazer. Posso reparar só nas cores, posso observar o movimento, reter os contrastes entre o claro e o escuro ou relacionar a solidez da terra com a flexibilidade do céu. Tudo isto é uma acção minha, através da qual tenho acesso ao que é; por assim dizer, o que é espera por mim para se mostrar. Também existe sem mim, mas não é visível. Precisa dos olhos para aparecer; assim, o olho significa aqui compreensão.

(…)

O exemplo dado por Sartre da observação da paisagem mostra-nos que de maneira nenhuma é só pela linguagem que surge a visibilidade, a perceptibilidade, e que esta actividade pertence muito mais essencialmente ao homem, que é uma actividade originada pelo homem. A fala é uma forma desta actividade. Logo que esclarece que o significado da fala reside na lia visibilidade, Sartre avança para o segundo passo, cuja verdadeira necessidade, desta forma, é uma questão em aberto. Na perceptibilidade, na revelação, não me contento em dar alguma coisa a escolher, porque cada descoberta e cada revelação acontece em relação com uma mudança na sociedade humana. O escritor é aquele que escolheu para sua missão a revelação das possibilidades de mudança.

Assim, o prosador é um homem que escolheu um certo modo de acção secundária a que se poderia chamar «acção por revelação». E portanto legítimo fazer-lhe esta segunda pergunta: Que aspecto do mundo queres revelar? Com essa revelação, que modificação queres trazer ao mundo? O escritor comprometido sabe que a palavra é acção: sabe que revelar é modificar e que só se pode revelar quando se pretende modificar. Abandonou o sonho impossível de representar imparcialmente a sociedade e a condição humana.

(…)

Mas podemos concluir desde já que o escritor escolheu a revelação do mundo e especialmente a revelação do homem aos outros homens para que estes adquiram, em face do objecto assim desnudado, toda a sua responsabilidade.

A exposição dos comportamentos humanos na sociedade deve levar a uma tomada de posição por parte do homem, que deve ver por si próprio o que se passa à sua frente e tomar-se co-responsável. Enquanto as relações não estavam expostas, o indivíduo podia furtar-se à responsabilidade.

Do mesmo modo, a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e que ninguém se possa dizer inocente.

(…)

Escrever é fazer apelo ao leitor, para que este inclua na existência objectiva a revelação que empreendi por meio da linguagem.

O destino da obra só se cumpre através da absorção pelo leitor, porque o seu sentido torna-se o sentido do leitor.

Mas o que tem tudo isto a ver com o conceito de «literatura comprometida»? Não estaremos a perder-nos numa teoria sobre a compreensão das obras de arte? De maneira nenhuma. E que aquilo a que o escritor apela quando recorre ao leitor é à sua liberdade. E, na verdade, a obra não serve simplesmente a liberdade, no sentido em que contém os instrumentos que as pessoas podem usar livremente, mas também apela à liberdade de cada um. Sem a intervenção da liberdade, a obra não pode realizar-se. Por isso, o escritor também não deve procurar

constranger nem fascinar o leitor para não lhe roubar a liberdade. Pelo contrário, deve reconhecer o leitor na sua liberdade e confiar nesta liberdade.

Assim, os afectos do leitor nunca são dominados pelo objecto; e, como nenhuma realidade exterior pode condicioná-los, têm como fonte permanente a liberdade, isto é, são todos generosos - pois chamo «generoso» a um afecto que tem a liberdade por origem e por fim.

O pressuposto da interacção entre escritor e leitor é um reconhecimento e exigência mútua da liberdade.

Quanto mais sentimos a nossa liberdade, mais reconhecemos a do outro; mais exige de nós e mais exigimos dele.

(…)

Porque é este o último fim da arte: recuperar o mundo, dando-a a ver tal como é, mas como se tivesse origem na liberdade humana... o escritor decide apelar para a liberdade dos outros homens, para que, pelas implicações recíprocas das suas exigências, o homem volte a apropriar-se da totalidade do ser e a humanidade seja reintroduzida no universo.

A sociedade humana tem, sem dúvida, a sua origem nesta liberdade, e é por isso que, para Sartre, esta sociedade humana é o alvo final da configuração literária e do trabalho conjunto entre leitor e escritor. Naturalmente que ao ser social também pertence uma determinada compreensão do mundo. Cada humanidade histórica possui uma determinada compreensão do mundo, que se manifesta directamente na actividade, na actuação sobre o que a rodeia e sua transformação. Aproprio-me do meio que me rodeia na medida em que actuo sobre ele e o transformo. Pois também experimentamos esta vontade de transformação como característica da actividade do escritor. O compromisso do escritor, o seu empenho, consiste na vontade de transformação da sociedade,

através do apelo à liberdade do seu próximo, através do elo de confiança que estabelece com o leitor, tornando-o co-responsável.

A alegria estética é entendida por Sartre como alegria na liberdade individual, que se manifesta na cumplicidade entre quem escreve e quem lê; é desta cumplicidade que nasce a compreensão do mundo, que não pode permanecer limitada a factos isolados.

Portanto, escrever é revelar o mundo e, ao mesmo tempo, propô-lo como uma tarefa à generosidade do leitor.

A primeira tarefa em prol da transformação da sociedade reside na luta contra a supressão da liberdade. O escritor não pode permitir que a liberdade seja limitada ou suprimida e responsabiliza-nos a todos por esta supressão. A consequência disto é que a literatura pressupõe uma exigência moral.

E se me derem esse mundo com as suas injustiças, não é para que eu as contemple com frieza, mas para que as anime com a minha indignação e que as revele e as crie com a sua natureza de injustiça, ou seja, abusos-que-devem-ser-suprimidos. Assim, o universo do escritor só se revelará em toda a sua profundidade com o exame, a admiração e a indignação do leitor, o e o amor generoso é juramento de manter, e a indignação generosa é juramento de modificar e a admiração, juramento de imitar, embora a literatura seja uma coisa e a moral seja outra completamente diferente, no fundo do imperativo estético discernimos o imperativo moral. Porque, uma vez que o que escreve reconhece, pelo próprio facto de escrever, a liberdade dos leitores, e uma vez que o que lê, pelo simples facto de abrir o livro, reconhece a liberdade do escritor, a obra de arte, por onde quer que seja analisada, é um acto de confiança na liberdade dos homens.

O compromisso do escritor é um compromisso com e um apelo à liberdade. O compromisso e a liberdade não se contradizem? De maneira nenhuma. Só aquele que é livre pode ser responsável pelo seu mundo e, portanto, pelo seu próximo. Quem não está pronto a lutar, a assumir os seus deveres, não é livre, mas simplesmente incapaz de se comprometer. A liberdade é o tema central da primeira peça de teatro de Sartre: As Moscas.

(Texto retirado de “Sartre” de Walter Biemel, ed. Círculo de Leitores. 2000)