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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Súplicas Atendidas

30.09.23 | Manuel

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Truman Capote

Um velho ditado texano: as mulheres são como as cascavéis — a última coisa a morrer é a cauda.

Algumas mulheres aguentam tudo durante toda a vida por uma foda: a miss Langman, segundo me contaram, era uma dessas entusiastas, até uma apoplexia a ter matado.

Todavia, como Kate McCloud tinha o costume de dizer: «Uma foda realmente boa vale uma viagem a volta do mundo — em mais do que um sentido.» E Kate McCloud, como todos nós sabemos, ganhou uma reputação: Virgem Santíssima, se a Kate tivesse tantas pichas a sair dela como as que já lhe enfiaram, pareceria um porco-espinho.

Mas Miss Langman, que Deus a guarde em paz, tinha cumprido a sua parte em A Historia de P. B. James — Um Exclusivo Paranóico em Associação com as Produções Priapus; pois P. B. já tinha encontrado o futuro. O nome dele era Denham Fouts - Denny, para os amigos, entre eles Christopher Isherwood e Gore Vidal, dos quais, depois da sua morte, o empalaram como personagem principal em obras da sua autoria, Vidal em Páginas de um Diário Abandonado e Isherwood num romance, Down There on a Visit.

Denny, muito antes de nos tornarmos compinchas, era uma  lenda que eu conhecia de cor e salteado, um mito intitulado: O Rapaz Mais Bem Sustentado do Mundo.

Quando Denny tinha dezasseis anos, vivia numa miserável aldeola perdida da Florida onde trabalhava numa padaria do pai. A salvação — ruína, para alguns — chegou certa manhã sob a forma de um milionário gorducho que guiava um descapotável Duesenberg, de 1936, novinho em folha e fabricado de encomenda. O tipo era um magnata da indústria de cosméticos cuja fortuna dependia, em grande parte, de um famoso óleo para bronzear; tinha casado duas vezes, mas a sua preferência eram rapazinhos entre os catorze e os dezasseis anos de idade. Quando viu Denny, deve ter sido como se um coleccionador de porcelana antiga se tivesse perdido num ferro-velho e desse de caras com um serviço de chá de Meissen: um choque de todo o tamanho! um arrepio de ganância! Comprou uns donuts e convidou Denny para dar uma volta no Duesenberg, até lhe passou o volante; e, nessa noite, sem sequer ter voltado a casa para mudar de roupa interior, Denny deu por ele a centenas de quilómetros de distância, em Miami. Um mês mais tarde, os seus pesarosos pais, já desesperados depois de infrutíferas buscas nos pântanos locais, receberam uma carta enviada de Paris, França. Essa carta foi a primeira de uma obra em vários volumes: «As Viagens Universais do Nosso Filho Denham Fouts».

Paris, Tunis, Berlim, Capri, St. Moritz, Budapeste, Belgrado, Cap Ferrat, Biarritz, Veneza, Arenas, Istambul, Moscovo, Marrocos, Estoril, Londres, Bombaim, Calcutá, Londres, Londres, Paris, Paris, Paris — e o proprietário original já tinha sido largado muito longe, oh, mais longe que Capri, meu lindo; pois foi em Capri que Denny foi caçado e fugiu com um bisavô de setenta anos que também era director da Dutch Petroleum. Este cavalheiro perdeu Denny em favor da realeza — príncipe Paulo, mais tarde rei Paulo, da Grécia. A idade do príncipe era mais próxima da de Denny e o afecto que os unia mais equilibrado, tanto assim que, certa vez, foram ver um tipo em Viena que lhes fez uma tatuagem idêntica — uma pequena insígnia azul acima do coração, embora não me recorde do que era ou do que representava.

Nem consigo lembrar-me de como o romance acabou, só que o Fim foi uma zanga provocada por Denny ter inalado cocaína no bar do hotel Beau Rivage, em Lausanne. Mas nessa altura, Denny, a exemplo de Porfírio Rubirosa, outro mito badalado do circuito europeu, tinha criado o sine qua non do aventureiro bem-sucedido: mistério e um desejo popular para investigar as origens. Por exemplo, tanto Doris Duke como Barbara Hutton tinham pago um milhão de dólares para saberem se outras senhoras estavam a mentir quando teciam elogios a essa pega de mercadoria encarapinhada, Sua Excelência, o embaixador dominicano, Porfírio Rubirosa, e suspiravam quanto a recheada eficácia dessa picha mulata, aparentemente uma ferramenta cor de café com leite de quase vinte e oito centímetros, tão grossa como um pulso de homem (segundo os manipuladores do produto, o único par do embaixador nesta parada de pichas era o xá do Irão). Quanto ao bom e defunto príncipe Ali Khan — que era homem de pau feito e grande amigo de Kate McCloud — a única coisa que essa brigada digna de Feydeau queria saber quando vasculhava os seus lençóis era a seguinte: é verdade que esse garanhão podia actuar durante uma hora, cinco vezes por dia, sem nunca se vir? Admito que conheça a resposta; mas se não a conhece, é sim - um truque oriental, virtualmente uma proeza de mágico, chamado karezza, e o ingrediente dominante não é resistência seminal, mas controlo da imaginação: uma pessoa chupa e fode enquanto vai imaginando uma caixa de papelão ou um cão a trotar. Claro que também convém estar empanturrado de ostras e caviar e não ter nenhuma profissão que interfira com comer, ressonar e concentrar-se em simples caixas de papelão.

Várias mulheres tiveram experiências com Denny: a honorável Daisy Fellowes, herdeira das máquinas de costura Singer, arrastou-o a volta do mar Egeu a bordo do seu pequeno iate, o Sister Anne, mas os que mais contribuíram para a conta bancária de Denny, em Genebra, continuaram a ser os mais ricos velhos caquéticos — um chileno da alta roda parisiense, Arturo Lopez—Willshaw, o principal abastecedor planetário de guano, caca de pássaro fossilizada, e o marquês de Cuevas, o Diaghilev do ballet itinerante. Mas, em 1938, numa visita a Londres, Denny encontrou o seu último e permanente patrono: Peter Watson, herdeiro de um magnata do óleo de margarina, não era apenas outro rico homossexual, mas — num estilo mesquinho, intelectual e acerbo — um dos tipos com mais pinta da Inglaterra. Foi graças ao seu dinheiro que a revista Horizon, de Cyril Connolly, foi fundada e subsidiada. O meio de Watson ficou boquiaberto quando o seu austero amigo, que normalmente olhava para os marujos de modo bastante convencional, perdeu a cabeça com o famoso Denny Fouts, um «playboy exibicionista», um drogado, um americano que falava como se estivesse a mastigar um quilo de papas de aveia do Alabama.

Mas era preciso ter experimentado o abraço mortal de Denny, uma pressão que quase punha a vitima num estado de torpor derradeiro, para apreciar a sua eficácia. Denny tinha jeito para um único papel, o de bem-amado, pois era tudo o que ele sempre tinha sido. Salvo as suas esporádicas trocas comerciais com o sector marítimo, este Watson tinha, até então, sido o bem-amado, um rapaz assediado cujo comportamento para com os seus admiradores tinha requintes que ultrapassavam Sade (uma vez, Watson partiu deliberadamente numa viagem de barco por metade do mundo com um jovem aristocrata perdido de amores a quem ele castigava não permitindo beijos nem carícias, embora todas as noites dormissem na mesma cama estreita — quer dizer, o Sr. Watson dormia enquanto o seu amigo, perfeitamente decente, mas a desintegrar-se, se remexia insone e com o escroto a doer).

É evidente que, a exemplo da maior parte dos sádicos, Watson também tinha paralelamente impulsos masoquistas; mas coube a Denny, com a sua intuição de putana para as necessidades inconfessáveis de um cliente envergonhado, adivinhar isso e agir em conformidade. Uma vez que os papéis se invertem, só a pessoa que humilha sabe apreciar os encantos da humilhação: Watson adorava a crueldade de Denny, porque Watson era um artista que reconhecia a obra de um artista superior, tarefa que deixou o elegantemente amargo Sr. W. prostrado em comas acordados de ciúme e delicioso desespero. O bem-amado até utilizava a sua dependência da droga para tirar vantagens sado-românticas, pois Watson, ao mesmo tempo que era obrigado a fornecer o dinheiro para sustentar um hábito que ele deplorava, tinha-se convencido de que somente o seu amor e tratos podiam salvar o bem-amado de uma sepultura de heroína. E, sempre que o bem-amado precisava de um chuto, ia à caixa dos remédios.

Foi aparentemente a sua preocupação quanto ao bem-estar de Denny que levou Watson a insistir, no início dos bombardeamentos alemães, para que Denny saísse de Londres e regressasse aos Estados Unidos — uma viagem que Denny fez com a mulher americana de Cyril Connolly, Jean, como dama de companhia. Esse casal nunca mais voltou a encontrar-se — Jean Connolly, uma espécie biológica muito pródiga, veio a morrer depois de uma foliona hégira através do país, juntamente com Denny, saturada de soldados, marinheiros e marijuana.

Denny passou os anos da guerra na Califórnia, vários deles preso num campo  para objectores de consciência; foi no inicio dessa época que conheceu Christopher Isherwood, então a trabalhar em Hollywood como argumentista. A partir do romance do acima citado Isherwood, livro que consultei esta manha na biblioteca, eis aqui uma descrição de Denny (ou Paul, como ele lhe chama): «Lembro-me de ter notado ao ver Paul pela primeira vez, no momento em que entrou no restaurante, que tinha uma maneira de andar estranhamente erecta; era quase como se estivesse paralítico de tensão. Sempre foi delgado, mas, dessa vez, parecia agarotadamente magro e estava vestido como um rapaz, com um exagerado ar de inocência que nos desafiava. O seu enxovalhado fato preto, apertado e sem enchumaços, camisa branca e gravata preta, dava-lhe a aparência de ter acabado de chegar à cidade vindo de um internato estritamente religioso. O seu modo de vestir tão jovem não me deu a impressão de ser ridículo porque se coadunava com os seus ares. No entanto, e como eu sabia que ele tinha vinte e muitos anos de idade, essa juventude tinha um efeito ligeiramente sinistro, como algo estranhamente conservado.»

Sete anos mais tarde, quando fui viver na Rua du Bac, numero 33, um apartamento que Peter Watson possuía em Paris no Quartier Latin, o Denham Fonts que lá encontrei, embora mais pálido do que o seu favorito cachimbo de ópio em marfim, não era muito diferente do amigo de Herr lssyvoo dos tempos da Califórnia: ainda parecia vulneravelmente jovem, como se a juventude fosse uma solução química na qual Fouts se encontrava permanentemente imerso.

Mas como foi P. B. Jones parar a Paris, um convidado no crepúsculo de altos tectos desses quartos fechados e labirínticos?

Um instante, por favor: vou lá abaixo tomar um duche. Há sete dias seguidos que faz um calor infernal em Manhattan.

Alguns dos sátiros cristãos do nosso estabelecimento tomam duches tão frequentemente e vagueiam pelos corredores durante tanto tempo que parecem bonecas índias encharcadas; mas são jovens e, em geral, bem constituídos. Todavia, o mais obcecado destes higiénicos tarados sexuais, bem como um incansável e sorrateiro frequentador dos dormitórios, era um gajo velho alcunhado de Gengivas. É coxo e zarolho, tem uma ferida a escorrer de pus no canto da boca e as bexigas esburacam-lhe a cara como uma tatuagem diabólica e pestilenta. Agora mesmo roçou a mão pela minha coxa e eu fingi não ter notado; esse toque, porém, provocou uma sensação de irritação, c0mo se os seus dedos fossem picadas de urtigas.

Havia já vários meses que Súplicas Atendidas tinha sido publicado quando recebi um lacónico bilhete de Paris: «Caro Sr. Jones, as suas histórias são esplêndidas. Assim como o retrato tirado por Cecil Beaton. Venha, por favor, ter comigo a Paris, como meu convidado. Junto envio uma passagem de primeira classe a bordo do Queen Elizabeth que partirá de Nova Iorque com destino a Le Havre no dia 24 de Abril. Se precisar de qualquer referência, pergunte ao Beaton: é um velho conhecido. Sinceramente, Denham Fouts.»

Como disse, tinha ouvido falar muito do Sr. Fouts — o bastante para saber que não era o meu estilo literário que o tinha motivado para escrever aquela ousada missiva, mas a fotografia que Beaton tinha tirado de mim para a revista de Boaty e que eu usara na contracapa do livro. Mais tarde, quando conheci Denny, percebi o que havia naquele rosto que o tinha impressionado ao ponto de correr o risco de enviar um convite e de subscrevê-lo com um presente acima dos seus meios — digo acima dos seus meios p0rque tinha sido abandonado por um tal Watson que se fartara dele, estava a morar no apartamento deste, em Paris, numa base instável e andava a viver a custa de amigos leais e de antigos admiradores meio pressionados pela chantagem. A fotografia dava uma noção da minha pessoa completamente errada — um moço transparente, cândido, puro, inocente e tão cintilante como uma gota de chuva em Abril. Ah ah ah.

Nunca me ocorreu não partir; nem dizer a Alice Lee Langman que ia partir — ao voltar do dentista descobriu que eu tinha feito as malas e ido embora. Não disse adeus a ninguém, apenas abalei. Pertenço ao género, um género de modo algum raro, que pode ser o seu amigo mais intimo, um camarada com quem fala todos os dias, contudo, se um dia não entrar em contacto comigo, não me telefonar, é o fim, nunca mais voltamos a falar-nos, pois eu nunca lhe hei-de telefonar. Tenho conhecido sangues de lagarto desses e nunca consegui compreendê-los, muito embora seja um deles. Apenas me fui embora, sim: parti à meia-noite com o coração a bater como gongos, como chaminés a uivar roucamente. Lembro-me de ter ficado a ver o brilho da meia-noite sobre Manhattan a tremeluzir e a escurecer através de serpentinas e confettis — luzes que não voltaria a ver durante doze anos. E também me lembro de ter escorregado em vómito de champanhe quando me dirigia aos tombos para uma cabina de classe turística (troquei a passagem de primeira classe e meti a diferença ao bolso) e ter deslocado o pescoço. Foi pena não o ter partido.

("Súplicas Atendidas", Truman Capote. Dom Quixote, 2008)