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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

TINHA 38 ANOS

29.08.22 | Manuel

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Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Quando de bruços
caiu
por duas balas varada

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Um fardo sem importância
que ali ficou enroscado...
e nem um grito saiu do seu peito estilhaçado

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Pelas costas e a frio
com arma de morte
e caça

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Eram 3 horas da tarde
na varanda
em sua casa...

__

«Maria Odete Lopes Rodrigues, de 38 anos, morreu assim em sua própria casa, atingida a tiros de caçadeira pelo marido. Trabalhadores da Construção Civil que se encontravam num prédio fronteiro presenciaram o crime: a Maria Odete tentou fugir mas foi apanhada por duas descargas, vindo o corpo a tombar na varanda. Então o Silva encostou a espingarda à parede e acendeu um cigarro, sem se preocupar com o cadáver (...)

Muitas pessoas se encontram revoltadas com o silêncio que se fez à volta do crime, que nem sequer foi noticiado nos jornais, atribuindo tal crime ao facto de o Silva ser muito conhecido na vila, onde é activista do CDS.»

Diário de Lisboa
17-6-1977

*

FIM DE DIA DE UMA OPERÁRIA GRÁVIDA

Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?
Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?

(“Antologia Poética” de Maria Teresa Horta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1994)