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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Todos ganharam… e todos perderam

22.11.23 | Manuel

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Texto sobre os resultados das eleições legislativas de 2015 que criaram uma situação que levou à formação do governo da geringonça, situação essa que poderá repetir-se com o próximo acto eleitoral de 10 de Março de 2024.

Ainda a poeira dos resultados eleitorais não tinha assentado e já uma das empresas, considerada outrora como modelar por pertencer a uma das famílias da burguesia nacional antes de esta a ter vendido a um grupo espanhol, a Somague, anunciava o despedimento de 300 trabalhadores, como que uma ironia às palavras do vice pantomineiro que, antes do dia 4, vomitava que os empresários estavam apenas à espera da reeleição da coligação para decidirem sobre novos investimentos, confirmando o “milagre económico”.

Pouco dias depois, a Unicer, empresa de onde saiu o ministro das cervejolas, dá a conhecer a intenção de fechar a sua unidade Santarém, o que acarretará o despedimento de cerca de uma centena de trabalhadores; e, para chatear, o investimento da Volkswagen, na unidade de Palmela, não está garantido, bem como a continuidade desta empresa, considerada o emblema da política de investimento dos governos cavaquistas, atendendo ao escândalo dos motores viciados, deitando por terra o velho slogan de que o que é alemão é bom, que até pode vir a ser o fim da empresa fundada pelo Hitler.

Outro acontecimento, trágico, ocorrido, na semana após as eleições, que foi a morte por afogamento de cinco pescadores à entrada do porto da Figueira da Foz, por falta de meios e demora do socorro, mostra o que é a política do PSD/CDS, de desprezo pela vida dos trabalhadores e do que ainda virá no futuro próximo. A continuidade da política de austeridade e a incontornável realidade de falência do capitalismo, que aquela política pretende remediar, são as duas notas a salientar ainda antes de nos debruçarmos sobre o resultado das eleições do passado domingo.

É no quadro de profunda crise estrutural do capitalismo, e da falta de perspectiva para nossa burguesia indígena, que as eleições para o Parlamento devem ser entendidas. Todos os analistas e paineleiros do regime suam as estopinhas para iludir a situação de impasse, de paz podre que se vive na sociedade portuguesa, e de crise, também grave, do regime de democracia parlamentar burguesa saída do golpe militar de 25 de Abril. Os partidos do PàF ganharam as eleições, mas perderam cerca de 800 mil votos e não gozam de uma maioria estável no futuro Parlamento; o PS perdeu as eleições, embora tenha ganho votos e deputados; o PCP, como tem sido habitual há muitos anos e quase outras tantas eleições, mantem praticamente o mesmo número de votos e de deputados, não conseguindo capitalizar em votos as lutas que lidera através da CGTP, como uma agravante é que ainda não percebeu por que é que isso acontece; os ditos pequenos partidos, com excepção de um, viram as suas expectativas completamente defraudadas, não conseguiram eleger qualquer deputado não podendo vir a ser muleta do PS caso este viesse a formar governo, apesar de alguns deles terem ao colo da imprensa de referência.

O PAN é a tal excepção, conseguiu eleger um deputado, que considera uma “proeza”, declara-se que não é nem de direita nem de esquerda, geralmente, isto quer dizer que é de direita, aguarda-se a obra. Os outros que apareceram nestas eleições, fica-se com a impressão que foram promovidos e pagos pelos partidos do governo para lançar a confusão, dividir o eleitorado que vota mais à esquerda. Ah! e o BE que, afinal, foi o único que parece ter ganhado, já que duplicou o número de votos e de deputados, relançando o projecto inicial, para o qual foi criado, de vir a prazo substituir o PS e o PCP no arrebanhamento do eleitorado de esquerda… e na gestão do capitalismo. A disponibilidade deste partido de viabilizar um governo PS e até nele participar é bem reveladora das verdadeiras razões que o faz correr.

Perante o impasse, com a austeridade a empobrecer os trabalhadores e a proletarizar a classe média, seria de esperar que partidos que se dizem do socialismo e do comunismo soubessem capitalizar este tremendo descontentamento e apontar o caminho para uma alternativa que ponha fim à causa do desemprego, dos baixos salários e da miséria em que o povo português mergulha, em aparente trágico e inevitável destino. O PCP viu o seu apoio aumentado nuns míseros 3 mil votos, a que correspondeu, no entanto, mais 1 deputado; o MRPP/PCTP viu encolher o seu magro apoio eleitoral, menos 3 mil votos – terão ido par o PCP? – e ainda não foi desta que conseguiu eleger um deputado para o Parlamento, o que não deixa de ser obra já que é o segundo mais antigo partido português.

O PCP há muito que segue as teses de Dimitrov da “união de todos os portugueses honrados”, que marcou a oposição à ditadura salazarista, agora consubstanciado em versão moderna de governo “patriótico e de esquerda”; são as teses tão queridas a Cunhal que, depois do 25 de Abril, se traduziram na famigerada “Aliança Povo-MFA”, mandando às urtigas o socialismo que, em termos de lutas de classes, não é outra coisa que o princípio leninista da “ditadura do proletariado”; um pouco à semelhança do PS de Mário Soares que, logo no primeiro governo constitucional e depois de ter arrebanhado o voto ao povo com o paleio de que era “socialista”, enfiou o socialismo na gaveta, alegando o realismo da situação; Cunhal invocou que o povo estava farto de “ditaduras”.

O MRPP, contudo, tem recebido do PS o maior dos desprezos, razão pela qual se percebe que o Costa tenha sido apelidado de “ratazana merdosa” e agora, depois das eleições, de “prostituta do chamado arco da governabilidade” e de “rameira disponível para todo o serviço… com cama no Palácio Praia, nº2, ao Rato”. Estes epítetos são expressão de caracteres ressabiados e do profundo isolamento em que se encontram partidos deste género. Nunca aprenderão com a experiência, devido ao carácter pequeno-burguês das suas direcções, jamais abandonarão a estratégia, que a realidade já mostrou por diversas vezes (mas parece que não são suficientes) que está errada; a etapa actual é a do socialismo, e é para esta tarefa que as massas dos trabalhadores e dos possíveis aliados devem ser esclarecidas e chamadas, as condições materiais estão reunidas, faltam as subjectivas.

O capitalismo esgotou-se, não consegue satisfazer o mínimo dos problemas dos trabalhadores, pelo contrário, é a principal causa da existência e do agravamento de todos eles; e as burguesias nacionais, só são patrióticas para explorar em exclusivo os trabalhadores, mas, como isso não é possível no mundo capitalista globalizado, o seu patriotismo esfumou-se. Com a classe média em processo rápido e irreversível de proletarização, classe que nunca assumiu grande relevo na sociedade portuguesa e o seu incipiente desenvolvimento deveu-se aos empregos no estado e não à pujança da economia, é do seu interesse ser chamada para o campo da revolução; e não é com “governos patrióticos” que isso se consegue.

Os resultados eleitorais e a dificuldade, daí decorrente, de o monarca de ópera bufa, o Silva de Boliqueime, arranjar um governo à sua medida são um bom indicativo da situação de impasse, dentro da classe dominante e no seio da sociedade portuguesa. O eleitorado, como já tínhamos afirmado antes do dia 4, iria votar (como veio a votar) contra a coligação fascista e contra a política de austeridade, só que não encontraria uma alternativa de confiança e à altura que colocasse fim à política de austeridade, esta como necessária e “única alternativa” à resolução da crise do capitalismo.

As crises do regime parlamentar burguês estão indissociavelmente ligadas às crises do sistema económico capitalista, porque quando a austeridade aperta na barriga dos trabalhadores e do povo, a confiança na democracia burguesa por parte dos trabalhadores sai seriamente abalada e por vezes é posta em causa pela agitação e revolta sociais. E os PS's têm funcionado como bombeiro da luta de classes, são os partidos ditos “charneiras”, a que todos se agarram, incluindo para o acesso ao pote por aqueles que geralmente ficam de fora, ou como muleta dos partidos de direita, para mais quando estes partidos são, pela sua actuação, partidos de extrema-direita, que porfiam em governar contra as próprias leis do regime; já depois das eleições, o Tribunal Constitucional viabiliza a semana das 35 horas nas autarquias, considerando que a intervenção do Governo na negociação de acordos colectivos viola a autonomia do poder local; esta constitui “apenas” a 20ª (vigésima) vez que o governo, agora demissionário, legisla contra a Lei Fundamental da República.

Esta deriva fascista, visando transformar a democracia burguesa em fascismo suave, tipo “democracia musculada”, bem revelada na proposta do Silva, na cerimónia de abertura do ano judicial, da possibilidade de alguns juízes do Constitucional puderem a vir a ser nomeadas pelo Presidente da República, acabando-se assim com “esta força de bloqueio”, acontece quando uma maioria dos trabalhadores e do povo ou já não confia na democracia burguesa ou se preparam para resistir violentamente às medidas celeradas de uma austeridade criminosa. As nossas elites não confiam no reviralho, ainda estão bem lembradas do susto que o proletariado lhes provocou em 1975, quando exigiu uma economia e uma sociedade de acordo com as suas necessidades e interesses, razão que ajudou a que a tão patriótica burguesia aceitasse a entrada na então CEE, na medida em que seria uma forma de salvação como classe exploradora e inútil.

Um governo PS, com apoio PCP+BE, seria um governo mais estável do que um PSD/CDS+ PS, seja fora ou dentro do governo, na medida em que esta última hipótese, e ao contrário do esforço patético de todos os opinantes e paineleiros de quererem provar o contrário, será o fim do PS a curto prazo, como o exemplo da aliança do PASOK com a Nova Democracia deixou bem patente. Não nos esqueçamos, coisa que os jornalistas de serviço nunca referem, o PS foi criado com os marcos da social-democracia alemã para cumprir uma missão específica; ora, a tarefa está cumprida e é bem provável que o seu fim esteja próximo… até porque o sucessor existe e já está a postos. Sabemos que o PS, atendendo à sua marca genética, está mais propenso a uma aliança com os partidos de direita, e o mais provável é vir mais um governo da coligação fascista a fim de completar o trabalho que ainda não terminou.

A rápida felicitação da Comissão Europeia pela vitória dos partidos do PàF, que considerou o resultado das eleições como uma demonstração de que a “maioria dos portugueses” quer que se mantenha “o caminho das reformas”, secundada pela do vice-chanceler Schäuble, que não hesitou em afirmar que a vitória da coligação “é um encorajamento à política que tem sido seguida em Portugal” e “isto mostra que uma política pode ter sucesso, e ser apoiada por uma maioria, mesmo que imponha medidas duras à população”, constituem manifestações de um poder fascista, não escrutinado e defendendo directamente os interesses do grande capital.

Na mesma linha se entende a atitude do Silva de Boliqueime, o ser que não gosta do 5 de Outubro e odeia a soberania nacional e não perde oportunidade em atacar a Constituição, apesar de ter jurado “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”; desta vez, entendeu não ouvir os partidos representados no Parlamento, tendo em conta os resultados eleitorais, chamando de imediato o correligionário, chefe do partido com mais deputados e encarregando-o de encetar diligências para formação de governo que envolva o PS, seja participando no dito ou garantir o seu apoio na Assembleia da República; ou seja, constituir um governo de sua inteira confiança pessoal, um governo de salvação nacional, ou de “união nacional” para salvação do capitalismo. As palavras são outras, governo que “assegure a estabilidade política e a governabilidade” e que seja “consistente”, mas também “estável e duradouro”, mas querem dizer o mesmo e deixam transparecer que os tempos são de tudo, menos “estabilidade” e “governabilidade”, porque a austeridade foi recusada por mais de 60% do povo português.

O Silva odeia a soberania nacional e revela-se, como toda a gente já sabia, que é um reles lacaio do hegemonismo alemão e do imperialismo norte-americano, ao traçar as linhas de demarcação do futuro governo: “respeitar os compromissos internacionais” de Portugal, incluindo a participação na NATO, a integração na União Europeia e a pertença à zona euro. Interessante ouvir as palavras “este é o tempo do compromisso” e “cultura de diálogo e da negociação”, sabendo-se de onde elas vêm: individuo autoritário e fascista, que raramente tem dúvida e nunca se engana, e cuja actuação é diametralmente oposta ao significado das palavras que usa.

Este outro atentado contra a Constituição mostra que a burguesia não respeita as suas próprias leis, incluindo a dita lei fundamental que regula o funcionamento do tal “estado de direito”, quando precisa de sobre-explorar os trabalhadores, a fim de defender os seus interesses de classe parasitária. Se os partidos existentes que ainda usam a foice e o martelo deveriam aproveitar as oportunidades para denunciar o caracter dúplice da burguesia e da sua democracia de faz de conta; e, dessa maneira, explicar aos operários e demais trabalhadores que este sistema económico e regime político não lhes servem, porque outros terão de ser construídos. E que os fascismos saem directamente do ventre da democracia burguesa quando o proletariado revolucionário ousa lutar contra os responsáveis pela sua situação de explorado.

Publicado na revista “Os Bárbaros”
12 de Outubro 2015