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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Um povo de (poucos) brandos costumes

15.08.23 | Manuel

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Jovens mostram os despojos depois de terem assaltado as guaritas da polícia no Rossio - Lisboa, principio do século XX

 As elites nacionais, e os seus órgãos de propaganda, costumam apresentar o povo português como um povo de brandos costumes, que aceita as contrariedades com a maior das resignações, incluindo as políticas de austeridade em tempo de vacas magras ou de crise, ora a história diz-nos exactamente o contrário. O povo português sempre aceitou mal a autoridade do Estado, nunca gostou da conscrição e revoltou-se frequentemente contra o aumento dos impostos, a escassez dos cereais e o aumento do custo de vida em geral.

Estas revoltas, motins e assuadas foram constantes ao longo do século XIX, especialmente durante a segunda metade depois do fim da guerra civil, e ao longo de toda a I República e parte do Estado Novo. A repressão se por vezes demorava por dificuldade das vias de comunicação era quase sempre implacável, apesar de raramente o estado de sítio com a correlativa suspensão das garantias constitucionais ser imposto, com o resultado inevitável de feridos e mortos.

Os textos que iremos publicar são retirados da obra de investigação de Diego Palacios Cerezales (um estrangeiro) que está publicada em “Portugal à coronhada – Protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX” pela editora Tinta da China e FCSH-IHC, Lisboa-2011.

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«Durante a segunda metade do século XIX, era habitual invocar a suposta «índole pacífica do povo português» para explicar a tranquilidade do país. A vida política alcançou paz, sem guerras civis, insurreições, revoluções ou pronunciamentos. Essa tranquilidade contrastava com a turbulenta vida política do vizinho espanhol e, também, com a do próprio Portugal das décadas anteriores.

As cortes portuguesas aboliram, em 1852, a pena de morte para os delitos políticos e, em 1867, para os penais, numa decisão pioneira de que se orgulhavam os liberais lusos. Na Espanha de Isabel II, pelo contrário, os militares intervinham frequentemente na política, a ameaça armada do carlismo mantinha-se latente, os caminhos, apesar do desenvolvimento da Guarda Civil, estavam infestados de bandoleiros e, quando havia protestos populares, as capitanias gerais assumiam as tarefas de ordem pública, suspendiam as garantias constitucionais e recorriam ao fuzilamento, frequentemente à revelia dos direitos e liberdades garantidos pelas constituições. Nada de semelhante ocorria em Portugal, o que indicava, para muitos comentaristas, a natureza distinta dos dois povos. Como gostavam de afirmar os liberais lusos, Portugal era um «enclave europeu na África que começa nos Pirinéus» 2.

A imagem de um povo português pacífico e respeitador da lei e da autoridade não era partilhada por outros observadores da época. Para Oliveira Martins, um dos intelectuais mais influentes da geração de 1870, os portugueses tinham um temperamento «Violento e ardente», como demonstrava a instabilidade política das décadas de 1830 e 1840; para o historiador Alexandre Herculano, albergavam a «impaciência e impetuosidade própria das raças latinas» enquanto, para o rei D. Pedro V «o primeiro instinto» dos portugueses era «resistir à autoridade» 3.

Para lá dos debates sobre o carácter nacional, oscilando entre a docilidade e a revolta, a segunda metade do século XIX português está recheada de episódios de protesto popular semelhantes aos de outros países. Também se registaram diversos casos de violência social que provocaram o escândalo no Parlamento, como o saque dos barcos que encalhavam nos areais de Aveiro e o assalto aos náufragos por parte das comunidades de pescadores 4. Numa perspectiva mais abrangente, constata-se que boa parte da conflituosidade social portuguesa foi uma resposta à carestia ou escassez de trigo e de outros víveres, mas, acima de tudo, que houve tensões, mobilizações e protestos de resistência ao Estado, às suas imposições normativas e inovações na cobrança fiscal. Para protestar, os portugueses do século XIX costumavam recorrer a formas de acção locais e comunitárias provenientes do Antigo Regime: as pessoas reuniam-se ao toque dos sinos, interpelavam as elites das localidades para que exercessem uma função mediadora junto das autoridades nacionais, atacavam os funcionários do poder central e saqueavam os edifícios e arquivos públicos. A par da permanência desse repertório tradicional de protesto, os portugueses adoptaram, ao longo do século XIX, novas formas de mobilização, características da política moderna: apresentaram petições, recolheram assinaturas, organizaram comícios, percorreram as cidades em cortejos multitudinários, concentraram-se em praças a exigir trabalho e, sobretudo no último quartel do século, entraram em greve. Estas novas formas de acção adaptavam-se às transformações do espaço político e económico, que acompanharam o desenvolvimento demográfico e económico ao longo do século, com a urbanização e a proletarização, mas que também correspondiam à importação de experiências dos movimentos sociais de outros países 5.

Independentemente das causas de cada mobilização, os episódios de conflitualidade alteravam aquilo a que as autoridades chamavam «ordem pública», ou seja, essa «situação e estado de legalidade normal em que as autoridades exercem as suas funções e os cidadãos respeitam e obedecem sem protestos». Para que os cidadãos cumprissem as obrigações que lhes eram impostas, os governantes utilizavam os meios coercivos do Estado e, como Portugal era o único país da Europa continental que, durante a segunda metade do século XIX, não contava com um corpo de gendarmeria, isso significava mobilizar o exército. A afirmação da autoridade estatal apresentava geralmente problemas logísticos. Quando os protestos tinham lugar longe dos quartéis, as tropas costumavam chegar demasiado tarde para os conter, já que as comunicações eram más e, apesar dos esforços governamentais, a ferrovia e o telégrafo se desenvolviam lentamente. Era frequente, como aconteceu em muitos lugares em 1862, 1867, ou até 1908, que os registos de propriedade ou do recrutamento militar já tivessem sido incendiados aquando da chegada dos soldados, paralisando a vida administrativa, ao mesmo tempo que uma lei do silêncio protegia posteriormente os responsáveis. «Os raios do poder central {chegavam} frouxos e descorados às extremidades», queixava-se um governador civil em 1858 6.

Outros problemas surgiam quando os destacamentos militares chegavam finalmente ao local do motim. Era então comum que a multidão os recebesse com vivas ao exército e gritos de «os soldados não dispararão contra o povo». De qualquer forma, se as pessoas continuassem aglomeradas em bandos vociferantes, a ilusão de que «os filhos do povo não feririam as suas mães e irmãos» desvanecia-se e, obedecendo às ordens, os agentes da autoridade disparavam contra a multidão, provocando mortos e feridos, ainda que por vezes a única justificação fosse a de que «era necessário manter o prestígio da autoridade».

Notas:

  1. O Nacional (Porto), ano XXI, nº34, 10-11-1867, PI;
  2. H ERCULANO (1980:35); Martins (1996b:33); Mónica (2000:13 e 140);
  3. DCD, 05-04-1878, p 942;
  4. Sobre as noções de repertório de protesto «antigo» e «moderno», cf. Tilly (1986 e 2004); TARROW (1997). V. também THOMPSON (1971); RUDÉ (1994).
  5. REAP, 1858, Aveiro.

(“Portugal à coronhada – Protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX”. Diego Palacios Cerezales. Tinta da China e FCSH-IHC. Lisboa. 2011).