Uma justiça que se descredibiliza e os escândalos da democracia portuguesa
Mal iniciara o mês de Setembro os principais media mainstream faziam título: “Com o fim das férias judiciais, os juízes voltam para resolver os casos mais mediáticos da Justiça portuguesa”. E são muitos, desde o caso Pedrogão Grande, Operação Marquês, Football Leaks à Operação Lex, Caso EDP e processo BES/GES, e os tribunais retomaram os julgamentos. De todos, só de um se sabe a decisão final: todos os arguidos do caso do maior incêndio que ocorreu em Portugal com mais de uma centena de mortes, Pedrogão Grande, foram absolvidos. Os advogados de defesa apontaram o dedo para os eventuais principais responsáveis, alguns dos quais governantes ou ex-governantes, que deveriam, esses sim, ter estado no banco dos réus.
Os restantes vão esperando, destacando-se o caso BES/GES, pouco falado pela imprensa corporativa pela razão, facilmente compreensível, de se tratar da maior falência financeira, fraudulenta ou não, ocorrida em Portugal, talvez três vezes superior à do BPN no que concerne ao montante dos prejuízos directos e indirectos. O principal protagonista e arguido do caso ainda faz sentir a influência de ter sido, e ao que parece o domínio ainda não acabou, o DDT (Dono Disto Tudo) deste recanto à beira mar plantado. Ainda esperamos que o jornal Expresso, propriedade do sócio nº1 do PSD, um dos principais partidos do regime, dê a conhecer os nomes de jornalistas ou outros, dos mais que famosos Panama Papers, que se deixaram subornar (“corromper” é feio) por Ricardo Salgado para lhe tratarem da imagem pública. Ao que parece o “contrato” ainda se mantem.
Aqui há uns anos foi editado um livro, deveras interessante, sobre o tema da corrupção e da benevolência com que a Justiça tratava, e trata, esses casos muito conhecidos entre nós; livro escrito pela jornalista espanhola Virginia López, correspondente do jornal El Mundo e da radio Cadena Ser, a viver em Portugal há dez anos, no momento em que escreveu o livro, 2013. Dá-nos uma visão com o devido distanciamento de pessoa estrangeira, uma visão fria e objectiva e que nos elucida sobre os grandes escândalos da democracia portuguesa que, na altura, já ia na idade madura de quase 40 anos. Estando já a caminho de meio século, a situação, neste campo, não terá melhorado, bem pelo contrário.
Virginia López, no seu livro “Impunidade” (Esfera dos Livros, 2013) elenca os principais escândalos sobre corrupção e da vista grossa feita pela Justiça, e são eles em 2013 (outros já vieram a lume):
- Caso Camarate, acidente ou atentado?
- Fax de Macau, o escândalo das «doações políticas» ou subornos sobre o qual o ex-presidente Mário Soares nunca quis falar.
- Caso dos Hemofílicos, o escândalo da contaminação com o vírus da sida a doentes hemofílicos que atingiu a ex-ministra da Saúde Leonor Beleza.
- Saco azul, Fátima felgueiras: protagonista do escândalo municipal mais mediático.
- Caso Moderna, o grande escândalo financeiro na universidade privada ao serviço da maçonaria.
- Casa Pia, o maior escândalo sexual de Portugal: pedofilia, famosos e mentiras no sei da instituição.
- Caso Freeport,o escândalo das alegadas «luvas» a José Sócrates para construir um centro comercial numa zona protegida.
- Apito Dourado, o escândalo das escutas da «fruta», dos envelopes e da compra de árbitros.
- Caso Portucale, o escândalo do abate de sobreiros para um empreendimento imobiliário de duvidoso «interesse nacional».
- Caso Isaltino de Morais, o escândalo das chorudas contas na Suíça do sobrinho taxista do presidente da Câmara de Oeiras.
- Casos Sócrates-Independente/Relvas-Lusófona, os escândalos das licenciaturas express: equivalências relâmpago e diploma a um domingo.
Outros escândalos que, na altura, ainda estavam a aguardar resolução judicial e que agora sabemos qual foi:
- Caso dos Submarinos, o escândalo dos subornos, as contrapartidas ruinosas e os milhares de fotocópias de Paulo Portas.
- Operação Furacão, megaescândalo de fraude fiscal e esquema de evasão de impostos para offshores montado por grandes bancos e empresários.
- Caso BPN, o grande escândalo do banco que deixou um buraco financeiro de sete mil milhões de euros.
- Face Oculta, o escândalo do «polvo» e a sua rede de influências em várias empresas estatais.
A autora faz algumas considerações que passamos a transcrever, nomeadamente quanto: caso de Camarate, acidente ou atentado? O caso prescreveu sem resposta; casos Freeport, Moderna ou Submarinos, jamais Sócrates ou Portas foram ouvidos pela Justiça, e sete anos depois os dois únicos acusados nos julgamento Freeport foram absolvidos de todas as acusações; os três processos sobre o presidente do FC Porto foram arquivados; dos 150 doentes hemofílicos que receberam tratamento com plasma contaminado com o vírus da sida só 30 sobreviveram, mais tarde, em 2003, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu arquivar o processo… porque o caso havia prescrito, sem nunca ter ido a julgamento; apesar de condenado a perda de mandato, Valentim Loureiro não abandonou o cargo de autarca de Gondomar, também Fátima Felgueiras, implicada no caso Saco Azul, foi condenada na primeira instância a perda de mandato, mas não foi a ordem judicial que a levou a sair do cargo, mas sim a vontade do eleitorado; Isaltino Morais só entrou na prisão em 2013, 10 anos depois do escândalo das contas na Suíça ter rebentado, continuou no cargo e, mais tarde, como todos sabemos recandidatou-se como “independente” e não pelo seu antigo partido PSD, ganhando de novo as eleições, o eleitorado perdoou-lhe os crimes pela obra feita no concelho de Oeiras.
Fazendo as contas poderemos constatar que os escândalos atravessam os dois principais partidos do arco da governação, não deixando de fora o antigo anexo do PSD, CDS/PP de Paulo Portas. Qual deles o mais corrupto e mais tem denegrido e desacreditado o regime democrático saído do 25 de Abril? Os cidadãos que decidam.
Quanto aos casos ainda em aberto: Pedrogão Grande já foi encerrado recentemente, os outros esperam. Caso BES/GES, Ricardo Salgado, depois de ter sido condenado a seis anos de prisão efectiva, ainda não foi preso, espera recurso e teve tempo para sair do país para passar férias em paraíso turístico na Sardenha e ultimamente está a escrever o livro de memórias, apesar de ter entregue em Tribunal um atestado médico a provar que sofre de lapsos de memória devido a doença de Alzheimer, doença que o impedirá de se lembrar de muitos factos relacionados com a falência do seu império financeiro. Prevê-se que nunca irá para a prisão à semelhança do que aconteceu com Oliveira e Costa, homem de mão de Cavaco Silva e principal arguido do caso BPN, que não cumpriu a pena de 14 anos de prisão efectiva a que fora condenado pela simples razão de, entretanto, ter falecido. Pôde gozar calmamente o resto da velhice após divórcio simulado para não ter nada em seu nome, sendo detido em 2008, foi condenado em 2017 e morreu em casa em 2020, com 84 anos – o melhor exemplo da “celeridade” da Justiça em Portugal quando se trata de julgar e condenar algum rico ou poderoso.
A Justiça constitui o ramo da administração fascista que ficou praticamente incólume após a “revolução dos cravos” (por alguma razão terá sido). A passagem à reforma dos juízes do Antigo Tribunal Plenário, onde a Pide dizia como e a que penas os opositores do regime devim ser condenados, dá bem a ideia da natureza de um órgão de soberania que não se encontra sob o escrutínio democrático do voto dos cidadãos. Por esta e outras razões que se entende que a Justiça tem sido quem melhor e mais tem contribuído para a sua descredibilização. À semelhança do regime que foi derrubado (pelos vistos, mal) pela acção dos militares (estes, por sua vez, um dos pilares da sustentação do Estado de classe), este regime democrático e parlamentar encobre, mas de forma mais sofisticada, a subordinação do poder judicial ao poder político, seja ele parlamentar ou executivo. A independência dos poderes do Estado, que deveria caraterizar o estado democrático e de direito, também tão apregoado e incensado, não passa de uma vulgar falácia.
A Justiça em Portugal é uma justiça de classe, usa uma rede que deixa passar o peixe graúdo, mas retém o peixe miúdo, ou seja, usa duas medidas para julgar e condenar os criminosos: uma para os ricos e poderosos, outra para os pobres e os trabalhadores ou todos aqueles que são “diferentes”, seja negro, imigrante ou cigano. Com o agravamento da crise económica, os casos de corrupção mantêm-se e tendem a aumentar, mas também devido à inércia do poder político para lhes pôr cobro, ou do poder judicial que é vesgo segundo a conveniência do regime, fácil se torna o aparecimento de um qualquer “Salvador da Pátria”. Figura providencial que não será menos corrupto do que aqueles que diz combater, e os exemplos estão a saltar em Portugal e em outros países. Aproveitando o descontentamento de grande parte dos cidadãos não será difícil prometer um mundo melhor na base de promessas vagas que sabem que não irão cumprir, já que os “democratas” lhes abriram o caminho com as suas mentiras e cobardia política. É a democracia e a sua justiça de classe que se desacreditam, e aos olhos de todos. Entretanto, a corrupção e as injustiças permanecem porque fazem parte da alma da sociedade burguesa e capitalista.